domingo, setembro 25, 2005

Um Dia Difícil

A escrita está-me no sangue. Há "milhares de anos" que passo ao papel as minhas emoções, que sinto este não sei quê à frente de uma folha em branco. Mesmo quando o tema é apenas profissional, há como que um medo de não acertar na palavra certa, de não chegar à ideia que tenho na cabeça.
Tantos anos de profissão também foram como que castrando o impulso da emoção. O pessoal foi ficando amarrado a regras, a leis e mergulhando lá no fundo.
A blogoesfera tem-me libertado de algumas das regras e tenho solto alguma coisa de pessoal. É uma forma de deixar escritos aos amigos, à família.
Hoje é um dia difícil.
Antes de vos dizer porquê, quero deixar-vos algumas estórias.
Vivi algum tempo no Chiange, "terra de perdizes", na tropa. Antes que o capitão me enviasse, como represália, para o Chitado, tinha a família comigo. O meu filho mais velho tinha nessa altura dois anos e pouco.
Naquela terra havia um problema de abastecimentos, pelo que para variar a alimentação era preciso ir à caça: perdizes, rolas, coelhos, coisas assim, pequenas, para não darem muito trabalho.
A envolvente do Chiange é uma floresta de espinheiras onde existem rolas todo o ano. Aos domingos, eu e o meu filho, Ruca, íamos à caça. Ficávamos debaixo de uma espinheira e ele avisava-me quando poisava uma. Tinha um ouvido especial. Eu sempre tentava a habilidade de ferir uma para que as outras poisassem naquela árvore. Usava com mestria uma arma de pressão de ar.
O jantar já não tinha que ser o habitual.
O Ruca ficou um amante da caça e, com cinco anos, ainda com a pressão de ar debaixo do braço direito, porque não a conseguia encostar no ombro, matou o seu primeiro pássaro.
Todos os domingos, de madrugada, me acordava para irmos à caça - isto já no Lubango. E lá íamos para as terras adjacentes à estrada que ligava a cidade ao Km 16.
Foi crescendo até que chegou o 25 de Abril, com nove anos. Toda a movimentação política da altura o entusiasmou muito e rapidamente, porque eu me envolvi de alma e coração na luta política ao lado do MPLA, ele se transformou num "pioneiro" militante.
O entusiasmo foi crescendo e eu não conseguia que ele lesse nada que não fosse marcadamente político. Com uma excepção: "Os Capitães da Areia", de Jorge Amado. Leu-o de um fôlego.
De um momento para o outro, o Ruca só falava de política e na escola transformou-se num verdadeiro líder.
Já em 1976, depois de terminada a invasão sul-africana, com a situação mais ou menos normalizada, as aulas a decorrer, houve na então Escola do Ciclo, um movimento de contestação a uma professora. Os alunos exigiam a sua demissão.
A situação nas escolas não era fácil, até porque os professores também já não eram muitos. O então ministro da educação, António Jacinto, foi ao Lubango para avaliar algumas situações, entre elas aquela contestação. Promoveu uma reunião geral da escola e tentou demover o movimento contestatário.
Foi ele mesmo que me contou: sempre que a discussão parecia resolvida, o "Bandeirinha" levantava-se e repunha a argumentação, sempre em bases correctas de luta pela democracia na escola.
Na altura, António Jacinto perguntou-me se era eu que o ensinava - que era, de resto, o boato que corria nma cidade. Tive que lhe explicar que já não tinha tempo disponível para me encarregar do meu filho: além de gerir a Faculdade de Letras, onde também dava aulas, fazia uma jornal, dirigia a Rádio, onde formava um enorme grupo de jovens e administrava o principal complexo industrial da cidade.
O meu filho, que, entretanto, tinha aderido à JMPLA, sempre que falava comigo era de política e a conversa acabava com ele a chamar-me de "reaccionário de novo tipo" - o que na linguagem nitista ( que dominava completamente a Jota) significava "maoista".
Tido como adversário dos nitistas, eu era alvo de uma marcação "homem a homem". Em Novembro de 1976, os homens de Nito Alves promoveram uma assembleia geral de militantes, levada a efeito no auditório do Rádio Clube da Huíla, já transformado por mim em "Radio Popular".
Como estratégia cheguei à assembleia bastante tarde, mas os rapazes da Jota, quase todos meus alunos ou ex-alunbos e a quem eu tinha ensinado alguns truques, esperaram pela minha entrada na sala e um deles levantou-se para dizer "proponho o camarada Leston Bandeira para a mesa".
Proposta aprovada e eu aniquilado...
Os nitistas tomaram o poder na Huíla e para o conseguirem fizeram daquela assembleia uma verdadeira vergonha: misturaram política com a vida pessoal, fizeram acusações torpes, recorreram a tudo.
Era o Nito Alves a preparar-se para o golpe que aconteceria em Maio do ano seguinte.
Alguns dias depois, o próprio foi ao Lubango para, obviamente, ser recebido em apoteose. Eu era ainda responsável pelo DIP, o único membro da direcção que eles pouparam (eu era, de resto, à época da assembleia geral, o único membro da direcção do MPLA eleito. Não soube nunca como é que os outros apareceram).
Naquela qualidade imaginei um poster, que o MPLA exibe hoje no seu museu, com o Agostinho Neto a cortar cana de açucar (uma fotografia notável) e o poema do Helder Neto que terminava dizendo que Neto se escreve com "e".
Esse poster teve várias versões: uma com o fundo em verde e outras com o fundo branco, mas é uma obra de luta política notável. O Avelino Pichel, o dono da Gráfica da Huíla, ajudou-me muito na sua concepção.
Pois bem, enquanto Nito Alves discursava na varanda da Associação Comercial, militantes escolhidos distribuiam o poster. O homem ficou desorientado e até chegou a falar de Jesus Cristo e dos Evangelhos.
A Jota apertou a marcação e agora já não era apenas comigo. Era também a Zi, a minha mulher, naquele tempo directora da ex-Escola Industrial e Comercial Artur de Paiva, depois rebaptizada de Escola 27 de Março, data oficial da retirada das tropas sul-africanas da fronteira Sul.
Numa estratégia de confronto pessoal, os meus ex-alunos, conquistaram-me o filho, levaram-no a discursar em comícios para camponeses, puseram-no a alfabetizar turmas de adultos. Era uma espécie de herói do nitismo. Chegou mesmo a assinar, apenas com quase 12 anos, documentos de conspiração.
Já aqui contei a minha fuga, em vésperas da tentativa de golpe nitista.
A ressaca foi terrível e o Ruca acabou por se sentir perseguido e, mais tarde veio ter comigo a Lisboa. Cansado da política, encontrava na escola portuguesa poucas razões para se entusiasmar. E nem mesmo o futebol, de que era exímio praticante, o fez aderir à vida portuguesa. Apaixonou-se. Acabou por casar aos 18 anos. Telefonou-me uma quinta-feira, para me dizer que casava no domingo. Se eu queria ir. Que não!
A mãe veio de Angola e apadrinhou.
Deu para o torto e quando se sentiu perdido voltou aos braços do seu amigo, companheiro, camarada e pai. Trabalhou comigo no "África" e ainda tentou uma conspiraçãozita...Voltou a apaixonar-se e a apaixonar-se e a apaixonar-se e um dia, com uma das suas paixões voltou à sua verdadeira paixão: à sua terra, ao Lubango, onde estavam os seus amigos e os caminhos da caça que ele conhecia tão bem. Onde estava o espaço dele, o oxigénio dele. Fui vê-lo ao Lubango e os seus olhos brilhavam de novo. Não havia dificuldades que o vergassem. Havia de vencer - assegurava-me. E eu acreditava.
Até que, há 14 anos, num 25 de Setembro, alguém me telefonou a dizer que o meu filho já não era o meu filho. Um simples desastre com uma moto, de que também era apaixonado, tinha-lhe murchado o brilho dos olhos. Desde aí, todos os dias passaram a ser mais difíceis, mas este gostava de o riscar do calendário.

1 comentário:

Rita disse...

Gostava de lhe ter dado um abraço forte neste dia... não deve existir nada pior do que ver um filho partir antes de nós. Gosto muito de si.