terça-feira, novembro 28, 2006

A FINGIR SE FINOU

Não estou seguro de que Mário, se pudesse ver ou ouvir, gostasse por aí além do que se tem dito dele, do que foi e do que criou. No fim de contas sabe-se dele o que ele quis que se soubesse. Que fingiu ser poeta ou, sei lá, que fingiu ser pintor.
Vangloriar um morto à fartazana, quando pouco se lhe ligou em vida, é como roubar um cego Só que o cego não vê, mas ainda sofre; o morto não vê, nem ouve, nem sofre. Se pudesse decerto que haveria de matar-se mais de riso e de gozo!
Acho que já referi uma procissão que se passeou por Lisboa e pediu bençãos para as polícias por onde passava, incluindo a da António Maria Cardoso e culminou, no Camões, a suplicar à Santa a expulsão de Satanás do Bairro Alto, que seguimos atónitos. Creio que me extasiei a vê-lo saborear a caminhada. Mexia os lábios, um tique nele, como se mastigasse uma delícia divina. Já no Gelo e depois do primeiro golo do café o ouvi, enfim, comentar deliciado, que interrompia, por vezes para insistir:«É verdade, não é? Pediram à santa que abençoassse a Polícia de»... Eu acenava, que sim, mas a inquietude reptia-se: «Eu ouvi, não ouvi?»...
E lembro-me de ter estado num quarto, na Madalena, que por acaso não era o dele, mas o do Ernesto e da Fernanda, para uma de ocultismo. Como não podia deixar de ser o Pessoa apareceu, discreto, mas terrivelmente puxado pelo prato, que rodava na mesa. Só um poeta podia ter transmitido do além: «Eu sinto em mim outras dores que visto gulosamente».
E foi no Gelo que o Forte foi preso pela Pide, à hora do almoço. Para que não subsistissem dúvidas ele gritou: «Estou a ser preso pela Pide, estou a ser...» e foi levado ante um mal estar
silencioso. Um dos mudos e pálidos era eu. O Henrique, recém-casado, com dois filhos miudos e uma mulher difícil, já tinha sido levado. Não resistiu muito e falou. Era a história do capitão encontrado morto no Gincho. Fora esse capitão que entregara armas para a revolução maluca dos jovens intelectuais e artistas. A revolução consistia em assaltar o Rádio Clube, nas instalações na linha, durante a emissão gravada dos «companheiros da alegria», e pôr no ar uma gravação a anunciar a revolução e a incitar o povo a sair à rua. Não houve ataque nenhum, bem entendido. No dia aprazado só três intrépidos revolucionário se encontraram no Royal. O Manel (de Castro) disse logo que não ia, não senhor. No Emissor, à noite, só estava um velho e ir armado assaltar um velho não era revolução não era nada...
Entretanto as armas, na sua maioria, continuavam escondidas num consultório médico, no Estoril. O Henrique ficara com uma. Como era um revolucionário «experimentado» conseguiu que a arma se disparasse, em casa, furando o chão de madeira, mas sem ferir alguém no andar debaixo.
E quando o cap foi encontrado as investigações depressa levaram a Pide à Parede, para levar o Henrique.
E, depois, o Forte, no Gelo, supostamente armado. Não estava, claro. Apurou-se que um dos envolvidos era jornalista da ANI, que foi intimado a ir à Pide. Foi o director que lhe deu a novidade. Ele respondeu logo: «Não vou». De facto não foi. Nem houve azar. O Henrique saiu, devidamente referenciado como «o que falou»; o Forte saiu depois, mas teve que pagar uns trocados. O Henrique morreu em França. Fui lá. E lá encontrei uma carta de Cesariny, entre a papelada.
E foi no Gelo que encontrei uma vez o Pacheco eufórico a querer pagar-me o café, clamando: «O Mário Henrique é corno outra vez»! O Pacheco sentia-se, ele sim, «corno» de Cesariny, que vinha à estampa fora da Contraponto do «editor pusilânime», como Mário invectivou Van Krika!
Para ser feita, a história do Grupo do Gelo seria certamente trágica. Ao longo dos anos foram morrendo, aparentemente dizimados por uma maldição sublime, que amava decerto os que quria perder. Alguns morreram meninos, como o Escada por maleitas ou opção. Das letras só um monstro resiste, persistentemente acordado: Herberto Helder, nascido por assim dizer no Gelo e apaparicado pela Olga, o toque africano, suficiente para justificar o enquadramento...

domingo, novembro 19, 2006

DANTES E DEPOIS

Muitas vezes pior que dantes é o depois. Deve ser no entretanto que não se fez a agulha devida e o rumo perdeu-se. Uma pausa para reflectir - isso, isso! Mas o comboio do destino não espera, não. Os comboios são implacáveis e prometem sempre destinos cor de rosa. Quando se chega ao romper da aurora, não há taxis; e ao cair da noite o destino não tem nem a cor, nem o perfume que a viagem prometia!
É como as páginas coloridas, que não se lêem, das revistas, ou dos espaços televisivos, úteis para lavar as mãos: não constam do programa. Como o comboio do Bush, que saiu engalanado, com lotação esgotada, rumo ao dáká-isso e nunca mais lá chega.
Andei anos de zanga com um rei que deu o Ceilão a um tipo qualquer que casou com a filha. Nos tempos dos el-reis o Ceilão e as outras «províncias ultramarinas» não eram nossas, como eu o sujeito de Santa Comba gostavamos que fossem, eram deles, como eles demonstraram. Uns deram de uma maneira, outros de outros jeitos. Uns deram, outros largaram. Os que ficaram é que pagam, depois, as favas. Mude o que mudar, onde, quando e quanto, haverá sempre quem mande e quem pague as favas. Mesmo que seja do Benfica, ou que nem seja! Eu por aqui vou pagando mais e ganhando menos. Enquanto puder. Depois, oh! depois...ah!, depois, será enfim meu o reino dos céus...

sexta-feira, novembro 10, 2006

ANAIS

Para ser grande Afonso prendeu a mãe numa masmorra do castelo, em Guimarães. Bem que se esfalfou Pimenta Machado, por aquelas mesmas bandas, mas nunca deixou de ser pequeno. Pedro coroou uma defunta. Para se dar por ele, Vasco teve de navegar até à Índia. Há quem pense que Egas Moniz ganhou o Nobel para chatear Salazar. Spínola tinha monóculo, mesmo assim Almeida Santos não gostou dele. E quanta gente boa não terá passado ao lado da História?
Em 19 de Janeiro de 1976 eu completava 41 anos. Calma, calma, que não sou candidato, é só uma coincidência. Esbarrei num acontecimento, com essa data e, toca de me encostar. Nesse dia o Conselho da Revolução entendia nomear uma comissão de averiguação a casos de violência perpetrados contra presos sujeiros às autoridades militares.
Sobre a matéria a comissão redigiu um realatório. Não sei como esse então pouco divulgado documento, impresso pela Casa da Moeda, me chegou às mãos. Lembro-me, isso sim, de me ter merecido um comentário depreciativo, na altura muito na moda: «Afinal só mudaram as moscas!». Era, bem entendido, uma setença precipitada, própria de quem vira a existência, até então pacata, virada do avesso. Acabava de dizer adeus a África e recomeçava a ter de fazer pela vida, na minha terra natal, que reencontrava como território hostil.Um mais entre tantos
retornados e odiosos colonialistas.
Os portugueses não deixaram de ser portugueses por ter desabrochado uma revolução, quase
ridícula na sua ingenuidade bélica mas festivamente vitoriosa. Os «pides» ficaram quietos mas o espírito pidesco não desapareceu, limitou-se a mudar de coloração. O relatório que referi, assinado por: Henrique Alves Calado, Brigadeiro, que presidiu, José Júlio Galamba de Castro,ten. cor.Art., Rogério Francisco Tavares Simões,cap.frag.,Manuel José Alvarenga de Sousa Santos,ten.cor.pil-av. António Gomes Lourenço Martins,Juiz de Direito, Ângelo Vidal de Almeida Ribeiro, advogado, José de Carvalho Rodrigues Pereira, advogado, Francisco de Sousa Tavares,advogado, o relatório, ia dizendo, não deixou margem para dúvidas: tinha havido excessos vergonhosos.
Mas não tive razão na minha precipitada conclusão. Não tinham sido só as moscas a mudar!
O relatório era por si só a bandeira da mudança. O poder instalado permitira que se averiguasse, reconhecia os erros e assumia-os.
Abstenho-me de transcrever pormenores do Relatório porque o que me interessa sublinhar é a sua simples existência. Não se trata de um documento elaborado por uma facção contra outras. A lista de personalidades que constituiu a Comissão é elucidativa sobre a abrangência política. É estou em crer um documento histórico de incalculável valor humano e deve ter sido seguramente a primeira manifestação plural de democracia neste país, onde não me lembro se houve mais.
Foi precisa coragem. Oxalá a História não os deixe na penumbra...