sexta-feira, setembro 09, 2005

RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA/2

Para entender os que cresceram em África, não basta ter lá estado, como eu, uma dúzia de anos. Vivi a experiência de ver os filhos crescer e, depois, de novo em Lisboa, roído de saudades deles, que era afinal, e também, a nostalgia africana. Hoje, os filhos já ultrapassaram a idade que eu tive, quando saí. Não sei se eles têm ou não a nostalgia da mocidade, mas têm, isso sim, um rancho de filhos. Quero que eles saibam que também eu podia ter sido campeão...
Já entenderam porque não posso recordar as brincadeiras com odor a Jacarandá ou a olhar os imbondeiros casmurros. Para poder africandar, como os outros, tenho de procurar matéria comum ou improvisar, de modo a não parecer que faço batota.
Recuo pelo tempo até chegar a Melão, o avançado africano chegado ao Benfica nos anos 40. Habilidoso, mas franzino, de futebol curto. Tão ágil como frágil. Não devia ser pouca coisa roçar constantemente pela terra batida, onde então se jogava e se jogou por muito campo lusitano, anos e anos a fio, até à entrada dos idos de 80 (!), quando um ministro PS, com pelouro do desporto, determinou o fim do foot prof em terra batida. Foi o Estado a arcar com subsídios para os arrelvamentos...
Antes disso, antes mesmo do 25 de Abril, calhou ao Leixões receber um clube, creio que suiço, para a Taça das Cidades com Feira, que antecedeu a extinta Taça Uefa. E jogou em casa, num daqueles pré-históricos campos de terra batida, para pasmo suiço. O Leixões havia perdido por cinco-zero, na primeira mão, mas apurou-se ao vencer em casa por seis-zero o adversário. Foi um escândalo, por causa do campo. Por isso, o governo determinou e a Federação mandou cumprir que qualquer clube envolvido em competições internacionais teria de jogar em estádios devidamente arrelvados. Logo depois, sobrava outro escândalo: num sorteio, saiu a uma equipa portuguesa enfrentar-se com um conjunto da Alemanha de Leste!
Salazar achou demais e não perdeu tempo a clarificar: não senhor,ponto final, parágrafo. A Portugal não vem ninguém oriundo de países comunistas, tufa, toma lá e vai-te curar! E lá foi o clube da minha terra jogar: primeiro na suja e feia Alemanha de Leste; e o segundo match na Alemanha Ocidental!
O ridículo foi mais forte e pesou mais. Pesou tanto que isso acabou.

Por volta de 76/77, já Melão não jogava à muito e o Eusébio também não, o Benfica foi a Moscavide (!!!), onde empatou a zero; para a segunda mão, na Luz (com relva), os soviéticos chegavam a Lisboa na véspera do jogo, numa altura em que «O Diário» conduzia uma luta ideológica contra o futebol, «o ópio do povo!», e que os meios de comunicação social burgueses
embriegavam os que os liam, viam ou ouviam. Ir ao futebol era pior que ir à missa...
Nem imaginam o que os pobres comunas tiveram de engolir a seguir...
Na comitiva soviética vinha uma centana de jornalistas, de não sei quantos jornais, rádio e televisão, para ver, comentar e transmitir...
Remédio santo: acabou o «ópio do povo»...

O Melão era, já o disse, habilidoso, mas o Sporting da época era mais forte e ganhava mais campeonatos. A meio da década, até o Belenenses conseguiu o seu título de campeão nacional, que conserva religiosamente e que, como se sabe, foi o único. Quando finalmente Melão ganhou o campeonato (49/50) perdeu o lugar. Rogério até aí extremo esquerdo, passou a ocupar o lugar do africano, que desiludido foi para Setubal, acabar a carreira.
Mas logo a seguir, na época seguinte, outro africano, do Lobito, chegava ao Benfica: Águas, de seu nome! No fim de 54 era Otto Glória, que vinha empurrar o Benfica para cima, muito por terem chegado, na mesma altura, dois africanos da pesada: Costa Pereira e Coluna. Começava o ciclo encarnado, assente, é bom que se reconheça, nos africanos, aos quais se juntou em 61 um tal Eusébio, mesmo a tempo de também ser campeão europeu. Águas,Coluna e Eusébio foram para mim o Vasco da Gama às avessas, dobrram o Adamastor e trouxeram perfume africano para a Europa!

Um dia destes vou ter de africandar para trás para outro folguedos e trazer à memória Peyroteo, o africano branco do Lubango, se disser Huila, eles batem-me! E, bem entendido, o Espirito Santo, preto, mas tão lisboeta como eu, aqui nascidos. E hei-de lembrar um marroquino, que vi, na Cruz Quebrada, jogar pela selecção francesa, pouco depois do fim da guerra: Ben Barek, um regalo!
Na minha adolescência teria ganho, não duvidem, a qualquer deles, a jogar matraquilhos. Só que...não havia campeonato!

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