Chega-me a notícia de que alguns "heróis" se preparam para narrar em livro - que alguém há-de escrever - as suas vidas heróicas. Sem falar de nomes, uma vez que a notícia apenas traduz uma intenção, não posso deixar de fazer um aviso à navegação. Os heróis morreram - alguns foram mortos com balas nas costas... e outros serviram de carne para canhão
Os que agora se chegam à frente para contar estórias fugiram sempre na hora certa e reapareceram estranhamente com verdadeiras fábulas nas línguas.
Hoje quero prestar homenagem a alguns dos que tombaram porque se disponibilizaram para defender a terra que era sua de uma invasão de tropas estrangeiras.
Estamos em Outubro de 1975. Em Agosto, o MPLA tinha tomado conta da cidade do Lubango e , desde então, as notícias de uma concentração anormal de tropas na fronteira com a Namíbia recomendavam a necessidade de um reforço militar da região.
Todavia, tal não aconteceu, o MPLA como que esperava uma intervenção militar a Sul, por parte da República da África do Sul para a exibir à comunidade internacional. E até as tropas cubanas, que já se encontravam nessa altura em Angola, preparavam uma linha de defesa a meio do território. Estava decidido: todo o Sul, até Novo Redondo, inclusivé, seria entregue ao inimigo. As populações? Que interessava isso?
A invasão não se fez esperar. Com uma cavalgada sem paragens, um simples grupo de reconhecimento depressa se pôs às portas do Lubango, tomando, sem resistência, a cidade. Alguns dos que agora "ameaçam" com a estória das suas vidas heróicas pura e simplesmente fugiram às suas responsabilidades e puseram o corpo ao fresco.
Por causa deles muitos outros morreram.
Entre eles, um jovem estudante universitário, José Sequeira, que era chamado de "Cubas". Não sei por que razão, mas era assim que o conhecíamos na faculdade.
Na onda de pânico que se seguiu ao aparecimento das tropas sul-africanos, vários grupos de jovens, sem experiência militar, resolveram partir ao encontro do inimigo.
Foram presas fáceis, abatidos tiro a tiro e mais tarde recolhidos por funcionários e camions da Câmara Municipal. Enterrados em valas comuns.
Depois que as tropas sul-africanas, pressionadas pela diplomacia americana e pela pressão militar cubana, retiraram, voltei ao Lubango. A cidade tinha sido vandalizada pelos vários grupos de assaltantes e criminosos que por lá foram passando: sul-africanos, mercenários. UNITA, FNLA, todos contribuiram para o descalabro. Tarefas ingentes nos esperavam. Esse regresso não foi, todavia, pacífico. Contá-lo-ei lá mais para a frente.
Dois ou três meses depois do regresso, verificado a 18 de Fevereiro de 1976, fui procurado por um senhor que dizia chamar-se José Sequeira. Vinha de Luanda. Alguém lhe indicou o meu nome como sendo a pessoa capaz de resolver o grande drama da sua vida. Tinha perdido o rasto de seu filho. Algumas notícias davam-no como morto, outras alimentavam-lhe a esperança de ter escapado e se encontrar algures.
Esta última versão era suportada por sua mãe que, sistematicamente, dizia ter recebido telefonemas do seu querido neto, o Zé.
Eu tinha a certeza de que o "Cubas" tinha morrido, mas não tinha provas. Fiquei sem palavras, mas prometi ao pai daquele meu amigo fazer os possíveis para o ajudar. Nesse mesmo dia, falei com o camarada Cassiano, que trabalhava na Faculdade de Letras e era o presidente do Comité do MPLA na zona conhecida como o quilómetro nove ( na estrada que ligava o Lubango à fronteira Sul).
Expliquei-lhe o que se passava; prontificou-se de imediato a ir connosco ao local, onde, segundo ele, o camarada "Cubas" tinha tombado.
Percorremos em silêncio um caminho de mato desde a estrada até a umas árvores indicadas pelo Cassiano. Parou e explicou que o filho daquele homem que ali estava tinha sido morto atrás daquela árvore, ainda marcada por balas que também a trespassaram, ou simplesmente rasparam.
Cassiano era peremptório e a sua certeza fez-me baixar os olhos. Que dizer a um pai que ainda tem alguma esperança e, de repente, alguém lhe diz: "o seu filho morreu aqui"?
Com os olhos baixos percebi uns vidros verdes no chão. Debrucei-me e apanhei-os. Era os estilhaços dos óculos do "Cubas". Não havia qualquer dúvida. Os três os reconhecemos.
José Sequeira pai estremeceu e suponho que para reprimir o grito que teria solto se estivesse sózinho, deu-me um abraço. Ficámos abraçados por largo tempo e não mais trocámos uma palavra. Levei-o de volta ao Grande Hotel da Huíla onde estava hospedado e nunca mais dele tive notícias.
O "Cubas"- e não só - foi vítima não apenas da sua juventude e do seu voluntarismo. Foi vítima da incapacidade do MPLA de organizar o que quer que fosse e do oportunismo e da ganância e da cobardia de muitos dos chamados dirigentes.
Espero que alguns deles, antes de publicarem as suas "biografias heróicas", repensem as suas responsabilidades do passado.
E já agora, uma sugestão ao poder angolano: é tempo de prestar homenagem a quem deu a vida por ideais que o tempo rasgou, mas que alimentaram a esperança e os sonhos de uma juventude que nenhum movimento político mereceu.
2 comentários:
O herói dos tempos modernos não é celebrado em grandes contos e lendas fabulosas. O herói moderno tomba no local em que luta pelos ideiais que o movem. Não foram as palavras de quem recorda e os verdadeiros heróis seriam esquecidos.
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