sexta-feira, setembro 16, 2005

Auto-penitência

Voltemos atrás, para isto não ficar muito pesado.

Férias grandes do meu terceiro ano do Liceu. Lubango. A vida correu-me mal pela primeira vez. Quando cheguei ido de Nova Lisboa, matriculei-me no terceiro ano - já vos contei o meu exame do segundo na Escola 32 .

Começo das aulas. O movimento habitual, ver as pautas, saber a turma. O meu nome não aparece em parte nenhuma. Fui à Secretaria falar com o sr. Freitas, o chefe da dita, um goês com um sotaque estranho.

O homem achou muito natural que o meu nome aparecesse como o nº 14 do 2º C. Era fácil resolver. Transferiu-me para o nº45 do 3ºC.

Quando às vezes ouço as conversas dos professores de hoje não raro deixo escapar um sorriso. Acham insuportável - e eu até entendo - turmas de 25, 28 alunos.

Eu coexisti com mais 44 outros numa turma do terceiro ano do Liceu - tinha eu 12/13 anos. Alguns dos meus colegas eram repetentes e ali cultivava-se, sobretudo a indisciplina. Era fácil ser herói por um dia e depois ganhar-lhe o gosto. Foi o que me aconteceu. E, de repente -o tempo passa sempre a correr - estava reprovado. Uma dor funda no peito, um desgosto imenso por causa dos olhos tristes do pai, do ar desgostoso da mãe.... essas coisas.

Resolvi cumprir a minha própria petinência: não sair de casa, não jogar a bola, não jogar hóquei e basquetebol e tudo isso. Ler. Passou a ser o meu único afazer. De manhã à noite, lia.

Alimentava o meu novo vício na biblioteca da Missão do Lubango, uma casa onde viviam os missionários que trabalhavam no Sul de Angola. Quando vinham ao Lubango tinham ali a sua casa. E moravam lá também os que exerciam o ministério na cidade.

Lá conheci o venerável Padre Carlos Esterman, um alsaciano de barbas hisurtas e cabeça lúcida, autor de uma obra notável sobre os usos e costumes dos povos do Sudoeste angolano.

Uma ou duas vezes por semana saía de casa e ia à Missão levar uns e trazer outros livros. Mais tarde, quando o padre Gonçalves resolveu criar uma Biblioteca paroquial, eu e o meu irmão é que a organizámos. Muitos anos depois ainda lá fui descobrir as fichas escritas com a minha letra de adolescente.

Um dia, depois de almoço, fui buscar mais livros. A biblioteca estava fechada. Fui bater à porta de um dos padres, que, por acaso, a ia abrir, sem contar comigo. Em cima da cama, com olhar assustado estava uma das rapariguinhas que eu via por lá, no serviço domésico. O sr. padre ficou escarlate, meteu a mão no bolso e deu-me a chave da biblioteca, que nunca mais ficou fechada.

A cena baralhou-me a cabeça, mas, logo a seguir, resolvi começar a ler outras coisas. Entre elas Pittigrilli.

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