domingo, maio 23, 2010

Tive um Sonho

Estou cansado das mensagens que me chegam com motivos de Angola. Por várias razões: umas porque são um choro pegado, gente que vai aos sítios onde morou, tira fotografias, fala com as pessoas e faz relatos verdadeiramente patéticos do que sentiu ao verificar que os habitante de hoje ainda se lembram dos nomes antigos das ruas, das mesmas ruas que estão lá - agora mais sujas, mas desorganizadas, mas as mesmas casas, sem pintura, umas, a cair aos bocados, outras.


E o lancinante da saudade da mocidade perdida, dos bons "velhos tempos", do amor que os ligava aquelas terras e aquelas gentes.


Muitos deles são os mesmos que antes de 1974/75 debitavam enormes quantidades de amor pelas mesmas terras e pelas mesmas gentes, mas que, ao primeiro sobressalto , se esqueceram disso tudo e fugiram sem um gesto, sem uma palavra, revelando a sua verdadeira condição de colonos que até aí negavam.


Agora, muitos deles, para além do choro sobre o leite derramado fazem a apologia do que noutros tempos criticavam, como é, por exemplo, o Reino de Maconge. Durante muitos anos fomos poucos os que alimentámos a centelha, as tertúlias, o espírito de grupo e- porque não dizê-lo - as bebedeiras mensais, sem mulheres à mistura.


Aparece cada um a reclamar-se conde ou duque ou mais não sei o quê do Reino de Maconge...


Mas, enfim...também estou cansado da Nova Angola dos novos ricos, dos postais tipo Dubai atrás dos quais se escondem desgraças sem tamanho.


Por isso, por princípio, e desde há uns tempos, todas as mensagens, que pelo título, se anunciam como formas de falar de Angola passada ou de Angola de novos ricos saloios, vão para o lixo.


Hoje, porém apareceu-me uma imagem fantástica, eu diria mesmo milagrosa da mais bela estrada de Angola, da Leba. Um Fotógrafo, Kostadin Luchansky, aproveitou várias circunstâncias improváveis para fazer um retrato de sonho da Leba.


É tão bela esta imagem que devia ser aproveitada para uma campanha de informação sobre a verdadeira Angola, com os seus defeitos e as suas virtudes, sem deitar para debaixo do tapete pedaços de História.


Esta imagem fez-me recordar o sonho que eu tive para Angola, um país com igualdade de oportunidades para todos, com uma lei fundamentada nos princípios mais sólidos das culturas do xadrez das gentes que constituem o seu povo; um comércio a ombrear com o internacional, uma indústria com capacidade para transformar as suas matérias primas, uma rede de rodovias e ferrovias que transformassem este enorme espaço num sítio fácil de percorrer, onde fosse possível ir do Lubango a Malanje só para ver um amigo.


Um Estado diferente - porque a sua gente é diferente - e que pudesse servir de exemplo, não apenas aos seus vizinhos africanos, mas a muitos outros estados, incluindo europeus, convencidos de que são democráticos.


Esta imagem fez-me voltar atrás uns anos e voltar a sonhar, a lembrar-me da célebre frase de Luther King: "I Had a Dream". E já agora afirmar que lutei por ele até me convencer de que éramos muito poucos os que o viam.


Leston Bandeira, e Lisboa, 22 de Maio de 2010

sábado, maio 15, 2010

15 de Maio




Oficialmente, em Angola, a estação seca (do cachimbo) principiava - não se se ainda é assim - a 15 de Maio.


O cacimbo anunciava-se antes disso, com a cor das tardes de um amarelo difícil de igualar. Havia, também, lá para as serras, uma brisa, que, de madrugada se transformava em vento gélido, a ponto de, em Junho, as baixas ficarem brancas com a geada que se formava.


Era 15 de Maio de 1965 e a meio da manhã, o meu número foi dito aos altifalantes da Escola de Sargentos Milicianos de Nova Lisboa. Devia dirigir-me à cabine telefónica. Fi-lo a correr, estava à espera de notícias. Do outro lado, alguém me disse: " és pai de um belo rapaz, que nasceu hoje às sete da manhã. Está tudo bem."


Nada disse, larguei o telefone e fui à procura de um sítio onde pudesse estar sozinho e gozar aquela notícia. Finalmente, o meu filho tinha nascido.


E dentro de mim cresceu uma revolta ainda maior do que a que já me enchia o peito, quando o capitão Silva, comandante da 1ª Companhia, não entendeu que aquele fosse motivo para eu poder ir a casa, que ficava a 450 kms. Naquele ano, esses quilómetros demoravam muito tempo a percorrer; não havia asfalto e ter carro era só para gente rica. Eu iria de maximbombo.


Só consegui licença para ir ver o meu filho três semanas depois, princípio de Junho, com o frio a cortar quem se apresentasse desprotegido nas estradas.


O Dionísio, que também andava naquela macacada, tinha um mini. Eu e ele juntámos mais três manos e arrancámos.


Pouco depois da Caconda o carro partiu e eu quase não aguentava a ansiedade. E agora?... Esperamos, foi a resposta unânime. Mas, eu não estava disposto a ficar ali à espera de um qualquer milagre.


Aconteceu, o tal milagre: apareceu o Rui Marques Luís com a sua potente moto e ele todo artilhado: calças e casaco de cabedal, botas, capacete, óculos, luvas, enfim, tudo a que um motociclista a viajar por aquelas madrugadas de cacimbo tinha direito.


Parou e logo lhe foi posta a questão de me dar boleia. Olhou para mim, vestido como quem ia dar um passeio no picadeiro e chamou-me maluco. "Vais morrer enregelado, não aguentas, não penses nisso, etc., etc... e todos os outros (mais três, a repetir o coro).


Que se danassem, eu tinha o meu filho para ver e não houve quem me demovesse.


A viagem foi um verdadeiro tormento com alguns intervalos, quando encontrávamos uma fogueira que aquecia os pastores e por ali ficávamos a aquecer-nos e a falar do frio, das vacas e coisas assim.


Quando cheguei ao Lubango não sentia nenhuma parte do meu corpo. O Rui deixou-me em casa e eu fui directamente ver o meu filho: "oh! pá, chegou o teu pai".


Acho que não consegui dizer mais nada: meteram-me numa cama, rodeado de sacos de água quente, com todos os cobertores que havia lá em casa ( não sei mesmo se não foram pedir alguns ao vizinho) e puseram-me o rapaz ao pé de mim para eu ir olhando.


Para mim tinha começado uma nova vida, eu sentia uma nova responsabilidade e, mesmo quando na tropa tive que suportar provocações de todo o tipo, consegui resistir à tentação de seguir alguns companheiros que, entretanto, se puseram ao fresco noutras paragens.


Aquele menino, a quem foi posto o nome de Mário Rui ( a junção do nome do meu irmão mais velho e meu tio mais novo, praticamente da nossa idade) e a quem, não sei porquê alguém, ou eu mesmo, chamou de Ruca, passou a ser a minha responsabilidade absoluta e a minha saudade permanente, já que passei muito tempo sem o ver...


Com cinco anos ia comigo à caça das perdizes, com sete/oito anos era um craque na bola na Casa dos Rapazes, com dez anos era um "revolucionário"a quem só consegui "impingir" os "Capitães da Areia" do Jorge Amado como leitura entusiástica: "aqui também tem a revolução..." dizia-me todo empolgado.

Aos onze anos chamava-me "reaccionário de novo tipo" e aderiu ao movimento da Jota MPLA que apoiava o Nito Alves.


Com 14 anos juntou-se de novo a mim e apaixonou-se - uma coisa que lhe acontecia muito - mas, desta vez, foi a sério. Com a Vivalda deu casamento. Perguntou-me a uma quinta-feira se eu queria ir ao casamento que seria no domingo seguinte. Disse que não.


Quando as coisas deram para o torto sabia que podia contar com o pai. Voltámos à relação de camaradagem, voltou a apaixonar-se não sei quantas vezes e houve uma outra a sério -a Valentina , na foto aqui com ele.
Levou-a com ele para o Lubango, para a sua Terra, porque as saudades eram muitas. Fui lá visitá-lo. Estava um perfeito lubanguense. Não perdeu o vício da caça e acho que vivia feliz.

Hoje são 15 de Maio e o Ruca faria 45 anos. A última fotografia mostra-o um homem confiante em si. Eu confiava nele.