quinta-feira, abril 22, 2010

Recordar Comparando


Sentei-me à frente de um microfone para valer numa Estação de Rádio a sério no dia 20 de Dezembro de 1962. Para nada de especial, fazendo o que todos os princiantes faziam: naquela altura apresentávamos os programas de "discos a pedidos". É certo que nos bastidores íamos fazendo outras coisas, aquilo que permitia a uma emissora como aquela, o Rádio Clube da Huíla, funcionar 18 horas por dia.


A paixão pela Rádio não é daquelas que arrefece e se esvai aos poucos;não, aquece e chega a temperaturas insuportáveis, toma mesmo conta de nós, não pensamos noutra coisa. Acho que falo por muitos milhares de noutros "doidos da Rádio".


Fui trabalhando com várias pessoas, fui experimentando outras formas de comunicar: jornais, sobretudo, já que, naquela altura as alternativas se ficavam por aí.


Lembro-me de ter trabalhado com um radialista fabuloso, o Paulo Cardoso, no Rádio Clube do Huambo. Nessa altura também por lá andavam a voz magnífica da Maria Dinah, o peralvilhismo consequente do Aurélio Alves, o servilismo um tanto amedrontado do Fernando Pereira a descontrção do Ribeiro Cristóvão (simultânamete comercial da Cerveja Cuca), a displicência do Congo e muitos outros, cujos nomes agora não me ocorrem.


Nessa Rádio aconteceu um episódio digno de ser recordado e que me permite fazer a ligação ao que pretendo.



O Paulo Cardoso estava na Rádio até às três, quatro da manhã e tinha dias que saía quando a emissão ia reabrir, lá para as seis. Num dia desses, o Paulo estava a caminho do Hotel onde residia, no seu Gordini castanho, a alta velocidade como sempre e com o receptor respectivo ligado. A senhora que abriu a emissão não era profissional, fazia umas horas e proveitava para, enqanto corriam os discos ir fazendo umas peças de tricot. Então, naquele dia, abriu a emissão com o habitual discurso...."bom dia senhores ouvintes....." e quando o acabou esqueceu-se de fechar o microfone e começou a falar com o Orlando, que era o técnico de controlo da emissão e que estava do outro lado do vidro.


A senhora, falando da vida, o Orlando a ouvir e a responder e o Paulo a dar meia volta ao automóvel e a entrar porta dentro do Rádio Clube do Huambo, aos berros, com aquele vozeirão que ele tinha. Disse coisas que mais ninguém diria. A senhora enfiou o tricot na mala, passou de lado junto do homenzinho pequenino que era o Paulo Cardoso e foi para casa. Acho que nunca mais quis ver microfones à frente.


O Paulo Cardoso passava aquele tempo todo à noite no Rádio Clube porque não queria repetir as notícias que toda a gente tinha, provenientes da então Emissora Nacional. Ele queria na sua antena novidades e dava-se ao luxo de, em directo, nos noticiários do Rádio Clube do Huambo, de hora a hora, traduzir do Inglês e do Francês notícias captadas de outras ondas, de outras origens.


Para ele era fundamental ser o primeiro, ser original, ter coisas diferentes para os seus ouvintes.

E tinha. Com o Paulo Cardoso, nós os profissionais da Rádio daquele tempo, aprendemos quase tudo.


Por isso, do ponto de vista profissional, da única realidade que tenho saudades é da Rádio. Muitas saudades.


Mas não são apenas as saudades que me levam hoje a escrever sobre estas coisas. É também a imcompreensão pelo que se passa com a Rádio em Portugal. Todos os postos emissores começam pela manhã a dar - todos - as mesmas notícias, que, ou vão buscar aos jornais, ou à Lusa. Cada um tem os seus comentadores, que comentam, invariavelmente as mesmas coisas; a maior parte das vezes sem grande conhecimento do que estão a falar.


Passa-se de Rádio para Rádio e ouvem-se às mesmas horas, as mesmas notícias, redigidas da mesma maneira, às vezes com os mesmos erros. Hoje, por exemplo, a nomeação de um marmanjo com nome de treinador de futebol para o cargo de governador do banco de Portugal (mais um que nos vai dizer que ganhamos mais do que devemos...) chegou a irritar-me.


Hoje voltei a chegar à conclusão de que os homens e as mulheres (ela agora são mais) que fazem o jornalismo da Rádio se espiam uns aos outros com a intenção de dizerem todos a mesma coisa e da mesma maneira. Nenhum deles se atreve a ir buscar notícias a outras fontes a dar informação e a não limitar-se a ser o eco da frequência do lado.


Hoje, tal como noutros dias concluí que falta coragem aos homens e mulheres que fazem o jornalismo na nossa terra (afinal nas televisões e nos jornais o fenómeno é o mesmo...). Não se atrevem à diferença. Nelas percebe-se, mas neles, falta-lhes "cojones". Tenho que confessar a minha vergonha por ainda me associar, nem que seja apenas pela saudade a este grupo profissional.

sexta-feira, abril 02, 2010

O Povo da Guiné Bissau


Estive por duas vezes na Guiné Bissau, uma como professor, tendo-me calhado em sorte, porque fui dos últimos a chegar, a tarefa de ensinar português e à noite, aos alunos que tentavam completar cursos. Acabou por ser gratiticante, apesar de alguns problemas , uns relacionados com o alojamento, outros com o próprio funcionamento do Liceu Kwame N'Krumah, cujo reitor era o Manecas, um bem intenciondo, sacrificado, um verdadeiro patriota, que largou o seu próprio curso para ir, a correr, ajudar o seu país nas ingentes tarefas da Independência, mas a quem, evidentemente, faltavam recursos.

Lembro-me de ter uma turma com sessenta alunos, a quem eu dizia: "isto não é uma sala de aulas, é uma sala de espectáculos, só faltam as luzes...", porque, em cima dos sessenta ainda aparecia sempre uma dúzia de assistentes. Gostavam das minhas aulas, o que me lisonjeia, mas não pode fazer com que, analisando a situação, perceba que aquela era uma das dificuldades intransponíveis.

A massificação da Escola traz sempre problemas e na Guiné Bissau, muito mais, já que os dirigentes, os que se apresentavam com o "direito" e não o dever à governação, eram pouco escolarizados e cometiam erros tremendos para plateias de alunos já com alguma preparação.

Lembro-me, por exmeplo, que o Paulo Correia, mandado matar pelo Nino Vieira, foi a uma reunião com estudantes do 6º e 7ºanos da alura para lhes explicar que eles, alunos, tinham a sorte de ter uma Escola que os estava a ensinar porque ele e outros tiveram que abandonar o objectivo da sua preparação pessoal para se dedicarem à tarefa bem mais difícil de lutar pela independência da sua Terra, a Independência, que lhes permitia ter aquela escola, cheia de problemas - é certo - mas uma Escola para Guineenses. Foi aí que Paulo Correia pela adesão com que foi recebido pela Juventude, no fundo, decretou o seu próprio fim. Nino Não perdoava.

Uma outra das minhas dificuldades esteve relacionada com o regresso, já que a vice-reitora, em substituição do Manecas, acrescentou umas regas estapafúrdias às condições de termo dos nossos contratos, porque no baile dos finalistas, um tal Luís Vaz, professor cooperante português foi fazer um discurso que raiava o spinolismo.

Conclusão, fomos todos metidos no mesmo saco, o Buscardini, chefe da segurança, queria que eu fosse lá à polícia buscar o meu passaporte, que, de resto, já tinha sido objecto de chantagem por parte de um aluno que, em pleno exame, de prova escrita, me ameaçou não me entregar o dito se a nota não lhe conviesse...

Nessa altura disse ao embaixador de Portugal em Bissau,Pinto da França, que o "problema " era dele e eu queria o meu passaporte. Consegui regressar a Portugal a 5 de Agosto de 1978. O Luís Vaz ficou por lá mais uns meses...

Analisando a minha actuação como professor naquela ano lectivo longíncuo de 1877/78, acho que cumpri o meu papel. Lembro-me, igualmente, de ter ficado com uma excelente impressão do Povo da Guiné Bissau, desde que fora de Bissau. Na capital andava toda a agente a ver se resolvia um problema, se conseguia um emprego, se obtinha uma promoção, se, finalmente, era nomeado chefe.

Nesse tempo fiz várias viagens, a que mais me impressionou foi a que me levou até ao Norte, na fronteira com o Senegal, na antiga estância de turismo das elites coloniais, Varela, onde ainda havia vestígios de água canalizada, quente e fria, nas habitações espalhadas por um perímetro simpático junto à praia.

Eu, O Zé Nascimento e a Clara Campino divertim-nos com os nossos "hospedeiros", os flupes, islamizados e bons anfitriões.

Antes passámos uma noite em Susana, uma missão católica, dirigida por padres italianos e que, durante toda a noite conversaram connosco e nos explicaram tudo acerca daquela região e da História antiga e mais recente da Guiné Bisssau. Foi nessa noite que eu fiquei a conhecer aquele país e aquele povo.

De Susana para Varela fomos a pé, por caminhos de areia difíceis e penosos de fazer. A Clara, com os seus trinta quilos, lá aguentou a caminhada.

Acho que ela, tal como eu e o Zé, nos lembrávamos da viagem de canoa de Canchungo para S. Domingos em que vimos as piores condições de transporte possíveis de ver no nosso (dos três) universo. Recordo uma mãe, que, para proteger a filha, viajou durante algumas horas numa canoa feita de tronco de árvore, com as pernas colocadas em tal posição que nos parecia que se tocavam, algures por detrás da cabeça, deixando a resguardo um buraco suficientemente espaçoso para caber a sua filhinha de alguns três anos. Isto, no meio de uma multidão que prometia um afundanço da canoa a todo o momento.

Em S. Domingos confraternizámos com o povo da vila que, não sei por que razão, resolveu fazer um batuque durante toda a noite, até às 9 da manhã; um batuque com um som que ainda hoje permanece na minha memória, feito do ruído de palmas de mãos, com um ritmo irrestível.

De S. Domingos alguém nos deu uma boleia para Susana. Depois o luxo acabou. Bem como no regresso.

Desta e doutras viagens ficou-me a memória de um Povo, que naquele tempo tinha muita esperança no futuro. Acreditava sinceramente que a Independência lhe traria grandes benefícios.

Voltei em 1981. Em Fevereiro, como correspondente da ANOP, para substituir o Xavier de Figueiredo, que assitiu ao golpe de estado de 14 de Novembro de 1980. Um verdadeiro auto-golpe, já que o Nino Vieira, apresentado como cabecilha da rebelião, era, na altura, primeiro-ministro, isto é, "Primeiro Comissário" do Governo da República da Guiné Bissau, sendo Luís Cabral, irmão de Amílcar, o Presidente do Conselho de Estado, isto é, Presidente da República.

Em Março - 20 - fui expulso pelo Conselho da Revolução, mas o que presenciei durante estes pouco mais de 40 dias deu para perceber que os caminhos da Guiné Bissau não eram fáceis. Nino, além de dormir com as mulheres dos ministros, viajava e não fazia nada. Vendia as idas à Taywan por um milhão de dólares, depositados na Suiça.

O Povo, o tal povo cheio de esperanças, não existia na sua cabeça, nem na de nenhum dos líderes que com ele existiram, que o substituiram, que ele mandou matar, que mataram a outros. A geração da "guerra de Libertação" é uma geração maldita e, quando ela tiver terminado o país não tem Estado, o Estado não tem país e o Povo tem que ir encontrar outra solução. Por isso, há mais de vinte anos, escrevi: "A Guiné Bissau, como Estado Independente é um PUF histórico".