terça-feira, agosto 30, 2005

Paixões Descontroladas

Morávamos na Calumanda. O meu pai achava que eu tinha de pôr na cabeça um daqueles capacetes coloniais, em miniatura obviamente, quando ia para o colégio. Porque o sol, porque não sei mais isto e mais aquilo. Destestava contrariá-lo. Dizia que sim. Saía de casa com o tal capacete na cabeça e, logo ao virar da esquina, deixava-vo debaixo de uma bissapa. Assunto arrumado. Puxava do pente repunha a pôpa e lá ia alegremente. A minha vida era uma festa. Aos doze anos apaixonei-me a sério. Tão a sério que ainda hoje me lembro do nome completo dela. Só não o escrevo porque... sei lá, não é de cavalheiro.

Tão apaixonado fiquei que, de repente, tinha febre, tanta, que deixei de ver. Não era da paixão. Era da escarlatina. O médico, que não cheguei a ver, curou-me mas esqueceu-se de avisar que havia riscos. Para os outros.

O meu mano começou a aparecer com sinais estranhos de saúde: inchado, muito inchado; médicos e mais médicos e nada. Foi para o Hospital - para o Hospital velho de Nova Lisboa, uma espécide de casa assombrada, situada entre o quartel da alta, a administração do concelho, assim num descampado, lá estava o hospital, quatro assoalhadas, umas batas brancas, um verdadeiro susto. Sempre que imaginava o meu mano lá dentro, a minha alegria esvaziava-se e eu ficava sem saber o que fazer.

Ele também.

Detestava leite e obrigavam-no a beber canecas . E inchava ainda mais.

Um dia, arrojado, corajoso, chamou um soldado do quartel ao lado, onde o meu pai trabalhava e disse-lhe para ir buscar uma carrinha, aquela em que, de vez em quando, íamos passear, aos domingos: Ilha dos Amores, coisas assim.

O soldado lá foi e ele montou-se no veículo e apareceu em casa - fugido do Hospital - a dizer "não volto mais".

Que fazer? O pai lá se informou e descobriu, como médica do CFB, uma médica, de nome Jacqueline, belga, que, com umas análises, descobriou na hora o mal: neferite num rim provocada pelo contágio da minha febre escarlatina.

São tantas as lições desta estória que eu me furto à mais simples: era um perigo real viver.

DE COIMBRA AO CUNENE (2)

Retomo a minha viagem angolana por Angola e fingir que não tenho saudades...A primeira mansão, onde morei, uma casa pequena, num bairro clandestino. A construção clandestina, mais que fenómeno natural era um vício. Começou por cada um a desenrascar-se, porque cada vez eramos mais europeus com a mania que eramos africanos, mas não nativos de morar na palhota ou de se instalar no musseque, mas rapidamente evoluiu para formas comerciais/industriais bem rentáveis e bem estruturadas. Uma espécie de gangsterismo organizado, à maneira americana dos anos 20. Um dia passava-se por um qualquer sítio onde houvesse um descampado e via-se um pequeno tapume, depois uma simples barraca tipo capoeira, às vezes sem teto. Nem se reparava. Dentro da barraca começava a construção sólida. E em geral ao sábado ou ao domingo, quando os fiscais estavam de folga, colocava-se o telhado e zás, caiam as tábuas e lá estava a casa, por pintar, mas com os moradores a ocupar a maison. E como lei é lei e, como o amor, é cega e vê.
E via o sarilho e adivinhava o resultado. A fiscalização fazia o auto. O morador (ou o construtor) pagava a multa, mas ficava com casa onde morar. Era quase impossível, em Luanda, conservar um qualquer espaço de terreno, sem que de repente o víssemos embarracado e logo a seguir habitado. Bom, está na hora de voltar ao Jornal.

Com o Quim fiz a minha primeira saída para o Lobito. Num minúsculo Fiat 850, para os setecentos e picos quilómetros. A primeira passagem pelo Dondo, quer dizer que cento e oitenta já lá iam! Almocámos na Cela. Uma imensa estância agrária. Foi obra. A tentação pelo café era enorme. Valeu que o arranque produtivo era demorado e assim a Cela cresceu e foi assim que se conseguiu o leite. Até então, só leite em pó...
Quando partimos de Luanda, o Quim experimentado nas viagens, tinha-me dito: seis horas, seis horas e meia, vais ver... E vi. Vi imensas coisas e quis ver e deslumbrar-me. Descer o morro da Gabela foi mais demorado. Foi preciso parar para ver as quedas de água. Não são tão impressionantes como as do Duque de Bragança, mas isso eu ainda não sabia. Fascinaram-me. Depois foi Novo Redondo, finalmente o mar. Novo Redondo fez lembrar a Caparica dos anos 40.
Estava morto de sede, para pensar nisso. Não havia código de estrada que vetasse a sede.
Finalmente o Lobito, onze horas e meia depois...
Gostei do Lobito, logo à chegada. E não saí sem ir às salinas. Tive de jantar no Terminus, que pertencia aos Caminhos de Ferro de Benguela, uma das legendas de Angola. Mesmo quando ia a Benguela, sempre arranjava maneira de dar um salto ao Lobito.
Mas seria mais tarde em Moçâmedes, nessa inesquecível cidade do Sul, porta aberta para o deserto imenso e fascinante, que me entreguei, que comecei a sentir-me angolano. Nem era difícil arranjar pretextos para lá ir com frequência. O Atlético tinha uma excelente equipa de hoquei em patins. Ao lado, o Independente de Porto Alexandre, também possuia uma competitiva equipa de futebol. E havia as corridas de automóveis. E a praia claro, com recheio de luxo! De Moçâmedes saiu a primeira miss angolana, que foi também Miss Portugal.
Mas passear no deserto não era brinquedo. Era preciso sentido de orientação e experiência para evitar as manhas das areias macias, para não ficar atolado. Nunca tive problemas. Nunca fui sozinho. O Turra tomava conta e até possuia uma casa algures por ali, onde os meus miudos passaram férias e viram hienas. Alguma da gente ilustre que apareceu por Luanda e que quisemos (o Jornal) obsequiar. Foram ver o deserto, a Moçâmedes e, claro, à Baía dos Tigres!
A Báia dos Tigres só por si merece mais que uma citação, merecia um atlas tamanho família. Assim eu soubesse descrevê-la. Irei tentar, num próximo capítulo.Chau...
(continua sDq)

DE COIMBRA AO CUNENE

Era mais comum expressar: Portugal de Minho a Timor. Impressionante. Mas como colonialista mais moderado escolhi a versão reduzida. Claro que, muito provavelmente, nem virá a propósito, mas como diria um amigo já citado, «tem que se começar por algum lado»!
Esta experiência de convívio através do computador reaproximou-me de Africa, talvez seja melhor dizer dos africanos voluntários ou voluntariosos, mas dou conta que apesar de tudo não virei africano. Quis sê-lo; quis ficar. Mas não deu. Tive de regressar e durante algum tempo uma foto de um grupo de jornalistas que estiveram em Nakuru, onde eu me incluia, esteve exposta no aeroporto de Luanda. Um circulo à volta da minha cabeça indicava que era um dos procurados.
Já lá voltei depois, mais de uma vez, como diria um ministro saliente do actual governo. E fui bem recebido, de ambas as vezes.

Hoje percebo que fui um simples emigrante em África, o mesmo que o comum dos portugueses tem sido em França ou no Brasil, na Alemanha ou nos Estados Unidos, na Venezuela ou no Canadá, na Austrália ou no Luxemburgo ou na própria África do Sul, porque o mundo não é, e nunca foi, demasiado grande para os portugueses.
Não tenho as raízes que têm, por exemplo, os meus filhos, um que nasceu em Luanda, e os outros dois que para lá foram meninos e que não se imaginam fora do seu habitat natural. Mas mantenho o sentimento de gratidão por uma terra que me deu a oportunidade de afirmação suficiente para aguentar o resto do percurso.
As memórias que retenho e deixo sair são as de trabalho e de amizades. Não foi lá que saltei ao eixo, nem precisei de musseque ou sanzala para afirmação de virilidade. Por cá não faltavam lugares para isso, fruto de miséria ou moral doentia ou religião revoltante.
Comecei a trabalhar três dias depois de chegar a Luanda. Nada mau se levarmos em conta que desembarquei no porto de Luanda a um sábado à noite e na terça entrava no «Comércio», graças ao Rosa Duarte, amigo de Carlos Fernandes, jovem artista plástico, que também passeou pelo Gelo, antes de se radicar com a família, em Luanda, e que muito me ajudou a ambientar-me.

Deram-me como função «a cidade». Tinha de fazer a súmula dos acidentes, na esquadra e nos hospitais, dos casos de polícia, levados ao Tribunal de Polícia, cujo juiz era habitualmente o director da PJ.
Surpreendentemente, para mim, a página ganhou alguma notoriadade, a ponto do jornal concorrente, de maior dimensão, decidir admitir alguém para a mesma tarefa.Achei curioso que não tivessem optado por alguém experimentado. Fizeram exactamente o mesmo que o jornal do lado(de facto eram paredes meias, no centro da cidade e cada um deles com oficinas próprias).
Menos dotado, talvez, tirava menos partido da informação recolhida. Isso favoreceu-me.
Causou-me alguma impressão quando me apercebi quem era o director do jornal. Ferreira da Costa, ao tempo, doente em Lisboa. Mas logo soube que não era eu quem iria morder a mão que me alimentava. Mulher e filhos já vinham no barco a caminho de Luanda. E mais...a mulher já emprego no BCA. Ela ainda nem sabia que tinha lugar no primeiro banco privado da p... do território. Um executivo do Banco tinha aparecido, à noite, no Jornal, para pôr anuncio para empregado para o sector de estrangeiro, logo que falasse inglês. Vendeu-se-lhe logo a Kátia, que sabia inglês, francês e Finlandês. O português é que era um pouco mascavado, mas esquecemo-nos disso e o assunto ficou resolvido.
As coisas aconteciam, as oportunidades surgiam ao virar da esquina. Como era diferente a Lisboa que me viu nascer...

Quando Ferreira da Costa regressou a Luanda, fui como todos os colegas ao aeroporto. Era o único que o não conhecia. No dia seguinte o jornal assinalava o regresso do director com um cabeçalho a toda a largura da primeira página e onze linhas de título!
Pessoalmente nunca tive problemas com ele. Quando saí fiquei a dever-lhe alguns favores.
No «Notícia», depois, encontrei a grande alegria de viver e um companheirismo exemplar de Acácio Barradas, então Chefe de Redacção, e de Joaquim Cabral, um grande fotógrafo e um bom amigo. Angola viria a seguir. Sem o «N» não teria andado tanto em tão pouco tempo...
(continua, sDq).

segunda-feira, agosto 29, 2005

As Pitangas do Careca

Hora de almoço. Chego a casa está tudo de cara fechada. A mãe quase não aceitou o beijo, fugidía, o pai estava com o ar dos grandes dias e os manos olhavam-se e olhavam-me com olhos a esconderem-se.

Fiquei parado. A fome passou e o riso feliz que sempre me acompanhava morreu.

O primeiro a falar foi o pai: " que estória é esta, que eu já sou chamado à polícia por tua causa...?"
- ...polícia?
- Sim... polícia, confirmou a mãe. Diz que foste apanhado a assaltar a fruta de uma quinta, lá perto do Colégio...

- Agarrado?! eu? A mim ninguém me agarra. O Cantinflas, o Cantinflas é que foi agarrado.

Foi um almoço triste. Eu não gostava que a família tivesse problemas por minha causa. Tinha doze anos felizes, divirta-me todas as horas da minha vida e um dos divertimentos era fazer uns assaltos à Quinta do Careca, o director do Colégio Adamastor. Mas, naquele dia, um dos guardas resolveu levar o papel a sério e agarrou o Cantinflas, que era o mais lento e também o mais medroso.

Éramos três - o outro era o Araújo, da Rua do Comércio.

O Cantinflas foi levado à esquadra e deu os nomes dos nossos pais . Em Nova Lisboa, nessa altura, havia oito polícias, incluindo o chefe.

Toda a gente se conhecia, mas o "Careca" estava farto que lhe assaltassem a quinta, onde existiam saborosas pitangas, mangas, nonas, enfim, um salada magnífica. Mas, sobretudo, era o gozo, o risco, como se diria hoje, a adrenalina.

A denúncia do Cantinflas custou-me, fiquei triste, saí de casa a imaginar o que iria fazer ao meu grande amigo. Começámos por nos desencontrar no caminho de casa para o Colégio (viviamos perto um do outro).

Quando cheguei ao D. João de Castro ele já lá estava, encostado a um canto, triste, pesaroso, aproximei-me dele com más intenções. Ele percebeu... "tá bem pá...tá bem, mas o Araújo já me bateu... escusas de vir também tu armado em mau..."~

Desisti, mas durante dias não falei com ele. Faziamos o mesmo caminho, ele à frenrte eu atrás, até que um dia comecei a rir sózinho com aquele andar saltintante dele, razão por que lhe chamávamos Cantinflas. Voltámos à amizade e sempre que falávamos do assalto nos riamos com a cena: ele a dizer ao guarda: "foi aquele menino russo, que está escondido ali no meio do milho que me disse que esta quinta era do tio dele, um tio chamado "foge". E eu a ouvir a conversa, quieto que nem onça a preparar o salto.

Todavia o guarda não caiu na armadilha, que era largar o Cantinflas e correr atrás de mim.

Durante um tempo deixámos a quinta em paz, mas, sobretudo as pitangas eram uma tentação.

sábado, agosto 27, 2005

O LIBERTINO PASSEOU-SE PELO MUSSULO

Que o Luís me perdõe o abuso, mas foi em Luanda que eu li o seu amoroso deambular por Braga. O meu passeio foi mais prosaico. Aos dias de semana o Mussulo era...
E porque era, podia-se lá ir. Podia-se lá estar. Podia-se sonhar. E se Deus fez o Mussulo com tamanho carinho, decerto que se podia amar, mesmo de maneira fugidia.
Encomendava-se o almoço, à chegada passeava-se à beira mar.
Quando, à noite, regressava a casa levava um bolo, para aliviar a consciência. Também me aconteceu dar a minha de burgês e levar o agregado familiar ao Mussulo, num domingo. À Corimba fazer bicha para o «cacilheiro», desculpem, mas sou natural da Alfredo da Costa e falo à maneira que me habituei enquanto ia dando uns pontapés na bola de trapos. Encafuados no barco, chegava-se à ilha e... era o Inferno. Tudo cheio, gente por todo o lado, montes de miudos. E nem adiantava arranjar uma mesa. Nunca mais se era servido. Valeram-me os amigos que me chamaram para junto deles e da comida deles.
Não era a mesma ilha ou, talvez, no fim de contas, haja mais que um Deus, e o que está de serviço ao sétimo dia tenha um humor filho da mãe. Não repeti a graça.
Não era culpa minha que os meninos andassem na escola e a mulher trabalhasse no Banco...
Esporadicamente continuei a ir, a estar, sonhar, etc...
Frequentemente ia com um jovem arquitecto, que tinha barco, dos que não avariavam por tudo e por nada. Além de ter barco e ser arquitecto, estava na tropa. Lembro-me uma vez de o ter procurado no atelier e ele estar apressado a acabar uns riscos, porque tinha de ir a correr não sei onde para participar num desfile militar. E lá saiu a correr, devidamente fardado, salvo que se esqueceu das botas. E não é que fez o desfile de chinelos! Faço lá ideia da quantidade de oficiais que se esforçaram por não ver...
Como se não lhe bastasse ser arquitecto, militar e distraído ainda arronjou forma de ser bisneto
de Gungunhana, por parte da avó. Podem imaginar o gozo que me deu, por alturas da primeira FIL(da), quando me apareceu em Luanda, um amigo, artista plástico, que ia decorar o pavilhão da Diamang, também marido de uma finlandesa e que era, imaginem!, neto de Mouzinho de Albuquerque. Não resisti e levei-o a casa do arquitecto, num sábado, dia em que se almoçava
um funge muito sério. O arquitecto desatou a rir:«faça favor de entrar e sentar-se...» uma pausa, para sibilar logo a seguir «... numa cadeira!».
Como jornalista perdi a oportunidade. Nunca mais consegui tê-los juntos para fotografar o encontro e eu trabalhava num semanário ilustrado...

Mussulo (oh! Fernando, vê lá se acabas as férias!)

(As férias do Fernando estão a demorar bué.... Vão ver que tenho que aguentar este António, na sua versão mais dura, sózinho).
Está bem, António, tens razão, o Instituto do Café era a maravilha das maravilhas, mas isso tinha pouco a ver com o outro António. Era Luanda... prontos. Lá, até a PJ era boa!
Agarro na deixa e conto-te a estória da minha primeira ida ao Mussulo. O Nóbrega, um conspirador, frequentador das tertúlias de arte possíveis nessa altura (apresentou-me o Óscar Comenda), tinha um pequeno barco, daqueles com poucos cavalos ( eu sei lá... do mar só sei navegar e nadar, que o Chico Bamba me ensinou como deve ser). E fomos, mar dentro, demos a volta à Ilha e o motor do cujo começou a oscilar.
Queres ver que o malandro nos vai prejudicar... - duvidou o Nóbrega... e ruma direito à Praia do Bispo - exactamente, o sítio onde agora está montada uma urbanização, um sarcófago e não sei mais o quê.
Quando já estávamos perto da praia, eu, afoito, deixei-o ir sózinho e atirei-me às águas, qual Luís de Camões a salvar os Lusíadas. Não é que um bando de alforrecas malucas resolve atacar-me, assim, sem mais nem menos? Bem esbracejei, mas o Nóbrega estava entretido, a limpar as velas do motor daquela geringonça - explicou-me depois. Todavia, consegui chegar à praia como herói derrotado, e sem palmas.
Fim de semana no Mussulo, princípios dos anos sessenta. Estás à espera que te conte alguma coisa extraordinária? Se tivesse acontecido terias noticiado no "Notícia", aquela revista fabulosa que era uma espécie de televisão angolana e da qual eras o chefe de redacção.
Acabado o fim de semana, com aquelas coisas que tu não conseguiste saber, rumámos Luanda. Tinha, entretanto, acabado tudo quanto era líquido para beber, água, cerveja, vinho, o que quer que seja. Só faltava beber água do mar, daquele mar lindo, que tinha tudo, menos água para beber.
As promessas do paraíso tinham partido ainda o Sol era apenas um ameaça de cor e já estariam em suas casas, a usufruir de merecidos repousos (sem férias)
O barquito do Nóbrega ia levar umas três horas até chegar ao Clube Naval. A sede apertava. A noite tinha sido agitada, a madrugada, já o sol ia alto. Comecei a pensar na cerveja que iria beber na Bracarense, quando chegasse à Maianga, onde morava nessa altura.
Não joguei conversa fora e o Nóbrega bem me provocou de todas as maneiras e feitios, ("independência, não independência, autonomia"... essas coisas), mas eu só pensava na cerveja da Bracarense.
Quando chegámos ao Clube Naval, agradeci o fim de semana, apanhei um taxi e Maianga com ele. Entrei em casa com a promessa prometida de não beber pinga de água - nem do chuveiro.
Tomei banho, com os lábios cerrados - não fosse alguma maldita atravessar a fronteira... - vesti-me, água de colónia ( naquela altura era a Lavander) e rumei a Bracarense.
Oh! senhor ( eu agora podia dizer António) Saraiva, são duas imperiais!
Duas? Está à espera de alguém?
Olhei para ele com cara fechada. Ficou espantado, mas trouxe, a correr, as duas imperiais.
Bebi a primeira de um fôlego, com o Saraiva a olhar espantado e a segunda, a saborear, calmamente, olhando a rua, enquanto não apareciam os amigos da tertúlia e a quem contaria a aventura da minha primeira ida ao Mussulo.
Mais uma vez foi discutida a ideia da Independência, em surdina, sem que o sr. Saraiva ouvisse.
O Mussulo, hoje, é um ilha do mais feroz neo-colonialismo de que já ouvi falar. Nâo é possível a um jovem luandense viver uma aventura semelhante à minha. Era 1962 e eu só vivia com conspiradores, mas com a alegria de quem tinha uma terra por que lutar.

sexta-feira, agosto 26, 2005

O FADO

Saudade tenho saudade
Do tempo em que não sabia
Que esta palavra saudade
Infelizmente existia...

Fado é fado, não tenho culpa. Também gosto, por vezes, de relembrar o passado, mas nem sempre por saudade. Muitas vezes é contra a forma presente como se conta o passado. Salazar é a imagem de um passado doloroso. Imediatamente antes o passado não foi famoso, apesar da limpeza (muito pela ausência) que dele se vai fazendo.
Politicamente incorreto, administrativamente o país foi andando, devagar, é certo, mas foi andando. A guerra na Europa permitiu, mesmo devagar, chegar-se aos da frente. Pelos bolseiros da Gulbenkian ia sabendo coisas. O tabaco negro, o que eu bem gostava, era mais barato em Paris do que em Lisboa. E as camisas e não sei que mais. E os jornais eram melhores porque diziam coisas que os de cá não diziam, sobre nós, que nós sabíamos mas de que se falava baixinho.
Curiosamente viria a dar por isso, anos depois, já africano. Quando saía de Luanda encontrava tudo mais barato. Mesmo na Europa o hotel (bom) era menos caro que o de Nova Lisboa ou Sá da Bandeira, este era óptimo, com excelente serviço, antes e depois dos serviços de turismo terem completado um bom trabalho, que modificou por completo o folclore assaloiado do nosso turismo, bem distante do moçambicano. No regresso era fatal o peso a mais no balcão da TAP.
Foi no meu tempo que muita coisa mudou. Em quase todo o lado onde a nossa bandeira flutuasse, as chefias governativas eram entregues a senhores militares. Talvez a explicação
para o lento desenvolvimento e má vontade para a evolução seja essa. Mas quando a sociedade civil entrou no processo, na gestão dos sectores, com mais e melhor pedalada, o desenvolvimento dava saltos promissores.
Para vencer o peso da burocracia justificavam-se os projectos, como de interesse militar!
Com Santos e Castro, que substituiu o coronel Rebocho Vaz, o salto foi extraordinário. No caso da Educação as coisas já vinham a melhorar bem detrás, deve reconhecer-se. E o meu amigo, magoado e ofendido, sabe da matéria bem melhor do que eu.
Também é conveniente lembrar e reconhecer, que foi o levantamento popular, que condiziu à guerra, que fez andar todo o aparato construtivo, as cidades cresciam a olhos vistos e as estradas
abriam-se em todas as direcções.
Por essa altura apareciam muito por Luanda os figurões da finança, desconfiados ou descrentes das informações que lhes chegavam de Angola. E apareciam, a convite de empresários angolanos, alguns agentes económicos sul-africanos, curiosos e interessados.
O mais notável, porém, era o café. O Instituto, dito português, do Café, funcionava surpreendentemente bem. Não se limitava a controlar a produção e exportação, como se impunha ao respeito daquela coisa londrina que se chamava, se bem me lembro: Acordo Internacional do Café, que determinava cotas com extremo rigor.
O divertido, se assim se pode dizer, é que o Instituto angolano(sim senhor) era gerido por gente «suspeita». No Portugal desse tempo, qualquer pessoa suspeita era comuna, claro. Os dois cabeças do Instituto não eram situacionistas e talvez por isso o seu prestígio, que eles aproveitaram para fazer a sua batota. Os novos países africanos tinham-se esquecido do café e as respectivas produções baixaram imenso. Não podiam, bem entendido, preencher as cotas.
Os portugueses (oficialmente não havia angolanos) não tinham relações com outros países do continente. Mas os homens do Instituto, nos corredores do Acordo, cobriam os colegas desses países e assegurava-lhes o preenchimento das cotas. Era com o nosso café que os países desalinhados, com os quais evidentemente não tinhamos relações, cumpriam as cotas de exportação. Como se sabe, as inimizades não são para as ocasiões. Tenho algum orgulho em ter sido amigo do presidente do Instituto e uma admiração maior pelo trabalho que o Instituto desenvolveu no Uige.
Onde é que tudo isso já vai? E pior; porque teve tudo isso de se perder? Por esta altura Salazar já tinha abalado. Por mal dos nossos pecado, outros piores apareceram. Não há Jornal que nos salve!
Ou haverá?...

A Saudade, o Passado e o Futuro

Foi sempre assim: nunca consegui que esta "minha" gente se comportasse devidamente. Agora, por exemplo, dei o mote do "direito ao passado", assim como nem quer a coisa e escrevi umas coisas sobre o mais recôndito da minha memória e vem o António Gonçalves falar de "saudade escura".

Não é saudade coisa nenhuma, é o passado, o meu passado. E mais vale falar do passado do que do futuro, já que o presente é tão feio, tão feio que o futuro dificilmente existirá.

Mas, já agora, falemos do futuro.

África continua a não fazer parte das contas visíveis de quem manda no Mundo. É cada vez mais uma espécie de armazém clandestino, onde eles, os donos do Mundo, vão buscar algumas coisas que lhes fazem falta para continuarem a sê-lo. Um armazém guardado por uns "fiéis"que só pensam nos seus próprios quintais.

Do ponto de vista político, África, no seu conjunto, encerra várias artificialidades, que serão a sua condenação: fronteiras, sistemas políticos, são as mais evidentes.

A definição de fronteiras do Continente ainda é a que foi aceite pelas potências colonizadoras na Conferência de Berlim. E a carta da organização da Unidade Africana impede que se discuta. Ponto final.

Os sistemas políticos vigentes são uma confusão total, uma misturada de partido único e parlamentos folclóricos, com deputados comprados por preços baixos (nada que se compare ao "mensalão" brasileiro").

Por todo o lado, sobretudo na África sub-saariana, a corrupção é a regra. Os governantes transformaram-se numa espécie de senhores feudais, com direito a tudo, fazendo do território que governam propriedades suas. Vendem o petróleo, os diamantes , as madeiras, sempre tudo sem valor acrescentado - é só arrancar à terra e pronto - e distribuem o produto da venda pelos amigos, ficando, claro, com a maior parte para eles.

Outros, não tendo nada que vender, leiloam algumas das prerrogativas do Estado, como, por exemplo, o reconhecimento, ou não, de Taiwan.

Entretanto, quando se contam os refugiados, esfomeados, doentes com sida e outras doenças graves graves, a parcela dos muitos milhões cabe sempre a África.

Há mesmo zonas africanas onde a organização deixou de existir. Não tendo sido possível implantar um estado moderno, à maneira ocidental, alguns membros da comunidade internacional continuaram a vender armas aos senhores da guerra, que, dessa maneira, mantêm na escravidão populações inteiras.

Futuro?

Prefiro recordar o cheiro da terra - a única coisa de que tenho saudades - e o meu passado de criança e adolescente feliz, com a certeza - cada vez mais nítida - de que essa felicidade não impedia ninguém de o ser também.

Os netos do António, por exemplo, desconhecem o prazer de uma tarde a jogar o "oril", com buracos feitos na terra e com pedras de todos os feitios -não aquelas coisas bonitinhas que se fazem em Cabo Verde - e, no fim do jogo, perceber que, afinal, não era competição, era cooperação. De um lado e do outro, estavam um ou mais jogadores que apenas queriam arrumar aquele monte de pedras de uma certa maneira. E não raras vezes, os dois lados se transformavam num só, porque o importante não era a vitória mas a conclusão do "puzzle".

Hoje não consigo lembrar-me da cor das mãos que se tocavam muitas vezes na recolha das pedras de cada buraco, para as distribuir pelos outros. Eram tardes felizes, passadas sempre à sombra de alguma árvore frondosa onde o jogo estivesse montado. Nunca era preciso pedir autorização para entrar no jogo. Quem chegasse jogava, nem que já lá estivesse uma multidão de cada lado.

Os netos do António desconhecem o prazer de chegar a casa todo enfarinhado da terra, com as mãos quase pretas, das pedras e da terra e ir directamente para a banheira debaixo de uma saraivada de palavras que mais valia não perceber.

Os netos do António desconhecem e vão continuar a desconhecer o prazer de uma namorada mais velha, a viver, ali na sanzala mais perto, generosa e disposta a proporcionar o prazer de uma pele mais sedosa que a própria seda.

Nós, os que fizémos o "África", sempre pensámos no futuro de África e nunca hesitámos, mas a verdade é que em África ninguém nos reconheceu o direito a discutir tal futuro, assim como nos recusam o direito à terra e ao passado. Lá e cá. Não temos passado e pronto.

Lutei pelo direito a discutir o futuro da minha terra e agora estou disposto a mostrar alguma coisa do meu passado, sem abdicar, naturalmente, de, de vez em quando, assumir o papel que sempre foi o meu.

"Ele é um lutador..." está, neste momento, o António a pensar.

IDA E VOLTA

Africandar é, afinal, a versão escura da portuguesissima saudade. É disso que se trata quando se invoca a África ou o África. Começa-se por recordar uma paisagem, uma passagem ou uma frase ou um artigo ou cara bonita de um corpo proíbido e acaba-se com a lágrima ao canto do olho. E não tenho a certeza que seja um caminho. A ideia que faço do caminho é o que leva para diante. Mexer com o hoje é sonhar com o amanhã. O meu neto mais novo chegou de Angola e vem fazer os cinco anos junto do avô. Depois volta a Luanda e vai parta a escola. «Tão cedo não volta no Verão» diz-me a filha, que é tia dele. «Não vai para a escola portuguesa».
Eu sei que o neto é escuro, como a mãe, mas nasceu em Santarém. O pai nasceu em Luanda, de mãe finlandesa. Quando foi a altura optou pela nacionalidade angolana. O meu neto scalabitano de gema, foi registado na embaixada. Tenho oito netos. Sete são angolanos e a oitava é francesa. Dois de três filhos nasceram em Lisboa. O terceiro, em Luanda. Nenhum deles é, hoje, português.
Por descargo de consciência devo referir que quatro dos netos estão a estudar na África do Sul. Apenas um frequenta uma faculdade, em Lisboa. É o terceiro, dos quatro mais velhos.
Quando a situação se tornou mais crítica em Luanda, dois deles, e depois outros dois, vieram estudar para Lisboa. Logo que a situação o permitiu voltaram a casa e por cá só foram aparecendo esporadicamente, em férias.
Quase todos frequentaram a escola portuguesa, em Luanda. Com o tempo a escola portuguesa tem piorado e já não cativa os pais dos garotos.
Os meus netos estão bem. Gostam muito do avô. Dizem-lhe bom dia, pela manhã e depois zarpam para a piscina e depois de comer querem bonecos, no Panda, e querem, sobretudo, que o avô não os chateie. A escola portuguesa em Luanda, parece que não, que não vai lá muito bem.
Bom seria que alguém português se precupasse um pouco mais com algumas das escolas portuguesas, espalhadas por esse mundo fora...
Era o que eu faria se escrevesse no África. Estive há pouco a folhear alguns dos jornais que conservei e apareceu a tal lágrima, que me levou a maricar no início, mas a má raça reapareceu. Desculpem...

quinta-feira, agosto 25, 2005

Era na Escola 32

Era na Escola 32, na alta. Perto havia uma cadeia, o Hospital Novo e a Polícia Judiciária. O bairro era um bairro arejado, de moradias de primeiro andar e jardim. Muitos anos depois, o Liceu de Nova Lisboa seria construído lá perto, bem como a Escola Comercial e Industrial.
Mas, naquele tempo, só lá havia a Escola 32- Primária.

Do Liceu Diogo Cão, do Lubango, vinham os professores para fazer o exame do segundo ano. Precedidos de fama de muito exigentes, de más caras - pelo menos era o que dizia o velho Cabral, mais as suas duas filhas, Olga e Odete, mais a sua mulher, D. Aninhas.

A mim não me meteram medo os tais do Lubango. Desempoeirado, montado na bicicleta que o meu pai me emprestava para aquela empresa especial, apresentei-me a exame e consegui passar à oral. O velho Cabral fez uma festa - eu acho que ele não acreditava muito nas minhas potencialidades.

As orais a decorrer e eu entretido num grande jogo de futebol no recreio da 32. Futebol era comigo mesmo. O hóquei também, mas o futebol era amor mais antigo...

De repente, aparece todo alvoraçado, o velho Cabral : " que me chamavam para a prova de português.."

Lá fui a correr, entrei na sala esbaforido, a sacudir a poeira da roupa, peguei num livro e sentei-me, ainda afogueado, à frente daqueles dois senhores e uma senhora, que, com ar interrogador procuravam saber as razões de todo aquele tropel. Ignorei as interrogações oftálmicas e preparei-me para o interrogatório.

O Lucas, o dr. Lucas, que haveria, mais tarde, de ser meu professor no Diogo Cão e, mais tarde ainda, no Salvador Correia, professor vigilante da minha prova escrita de OPAN, pergunta-me: "então, das lições que acabámos de ler, qual delas queres?"

Sabia lá eu que lições tinham as vítimas anteriores lido. Esbocei o meu melhor sorriso e disse: "uma qualquer".
- Então, e qual é o plural de qualquer?
Aí quase garagalhei. "É quaisquer".

Lá atrás, na umbreira da porta, o velho professor Cabral riu satisfeito - eu vi pelo canto do olho que deixou de fazer aquela cara de zangado e de me ameçar com a mão em forma de cutelo.

A seguir foi um verdadeiro espectáculo. E lá passei para o terceiro ano do Liceu - soube-o já a noite tinha caído. Montado na "burra" da família, rumei o Bairro de Santo António no meio de uma escuridão tremenda, mas com o coração aos pulos de contentamento. Não propriamente por mim - que, naquela altura, a bola e os patins me bastavam - mas pelos outros, pelo meu pai, pela minha mãe e também pelo meu irmão e irmãs, todos a sofrer em casa, à minha espera.

quarta-feira, agosto 24, 2005

Hóquei

Oh! António!!! Então, isso diz-se dos meninos? Cá por mim, esclareço a minha parte: o jogador de hóquei era eu. E bom! Nem mesmo eu imaginava quanto. Ainda há poucos anos encontrei um antigo companheiro dessas andanças, que estando acompanhado de um amigo, me apresentou dizendo: " este é o Leston Bandeira...se tivesse nascido em Lisboa teria sido melhor jogador de hóquei que o Livramento..."
Espantei. E inisiti: "Idalécio, isso é mesmo verdade?"
Que sim, que era.
Está, portanto, esclarecido que eu era o do hóquei, como se fosse berlinde.
A propósito do hóquei, prometo recuperar um texto de homenagem ao Chico Bamba e ao Congo, os dois irmãos carismáticos de Nova Lisboa, que enviei para a página jurássica da Associação dos Antigos Estudantes de Nova Lisboa e que eles nunca publicaram. O problema é que tenho de o recuperar na cabeça, porque também me desapareceu dos arquivos desta geringonça.

VIDA AIRADA

Olha que dois se juntaram à esquina...Olha que dois!
No fim de contas é o África do Leston que volta, que vem para encantar. É só luxo. Não vou precisar de ir a Pedrouços fechar a edição. Quem sabia explicar melhor estas situações era Tavares da Silva, que esteve no Jornal do Congo com o mesmo afinco com que laborou no Diário. Se lhe perguntassem porquê um blog se o que se quer é um jornal? Ele haveria de dizer, com um sorriso maroto:
- Olha, filho, pela mesma razão por que se beija a mão às senhoras...
- ?...
- Tem que se começar por algum lado...
Se vamos recomeçar por aqui é útil clarificar, sobretudo quando não há nada para clarificar!Vocês, os ambos, começaram por ser meninos africanos. Pensava-se que cresciam, mas continuavam meninos. África tomava conta de vocês como se fosse uma ama e vocês os imbondeiros agrestes de estimação.E fizeram-se às damas porque se vestiam de pessoas crescidas.Eram meninos, claro. Um sei eu que se masturbava a olhar a vizinha, que se desnudava num terraço distante;o outro, jogava hoquei como se fora ao berlinde.
Casaram, pois. Continuavam meninos, quase sem dar por isso, mas tiveram raízes. De vez em quando fazem birra, para garantir que continuam meninos ou por serem meninos, como os poetas que não morrem, mesmo que os matem...
Eu abalei para África de barco. Clandestino, já amachucado. Rondava os trinta.E despertei no Comércio. E, de repente era alguém aos meus próprios olhos...
Em Luanda também tinha combóio. O dono do comboio tinha um cinema, o Kipaca. Nunca soube o que o termo significava. Podia ir ao musseque, passando pela Cuca, como quem fosse a Cascais. Os meninos africanos não sabiam, mas Cascais era uma aldeia inglesa, onde se tomava chá e os ingleses eram quase todos velhos e as mulheres deles umas velhas e, por isso, é que o comboio para o Cais do Sodré era bom.
O comboio dos musseques era melhor para qualquer dos lados. Parava onde fosse preciso e para tal nem precisava de estação. De manhã entrava tanta gente que eu comecei a acreditar que um dia havia de ver o comboio inchar, inchar...
Mas o que eu vi, numa manhã de reportagem, foi o comboio parar e logo entrar um magote. Um miudo ficar parado, a chorar. Tinha uma sacola.Devia ir para a escola, mas não conseguia trepar, não havia por onde.O garoto chorava...Eu vi, juro que vi, o maquinista descer da locomotiva. Vi, juro que vi, o matulão chamuscado, pegar na criança, sacudir uns quantos penduras e deposita-la na carruagem...
À noite também havia comboio. Era o comboio Kipaca, que trazia os kipacas para o cinema, no linguajar ferroviário. A linha chegava a Malange. Eu não. Mas fiz muito quilómetro do Lobito para cima. Não era só a cama que era boa, naquele comboio, meus meninos. A comida era excelente, sim senhor, mas o serviço prodigioso.Chegava-se a Nova Lisboa na manhã seguinte, onde descia tranquilamente, mas o comboio prosseguia, até ao Luso. Nunca fiz o percurso completo, mas disfrutei de alguns troços...
Outro dos comboios da minha vida era a ligação Lourenço Marques-Joanesburgo, uma noite completa.Considero uma sorte ter conhecido essas linhas e esses comboios. Choca-me hoje ouvir tanto paleio oco sobre o TGV e sobre a linha que não há e nem se sabe onde vai ser. Quanto comboio, quantos milhares de quilómetros de linhas espalhados sabe Deus por onde, que nós, os de antanho, construimos e pusemos a funcionar, até no Príncipe havia um comboio, minúsculo, sim senhor, mas havia. Já agora digam-se se tenho ou não razão, quando digo que tempo houve que se podia ir de comboio de Benguela à Beira, por via férrea? Quero acreditar que sim e quero acreditar que a África volte a ser para muita gente a festa que foi para mim, na curta dúzia de anos que lá passei...

terça-feira, agosto 23, 2005

Combóio

Vagueemos então pelas Áfricas da nossa memória e - porque não - da nossa saudade. Recuperemos um direito de que ninguém fala porque, aparentemente, toda a gente o tem realizado. Reivindiquemos o direito ao nosso passado, à recordação das nossas árvores do esconderijo, do jacarandá à sombra do qual beijámos a primeira namorada Soltemos o verbo e falemos do nosso comboio, puxado por potentes "garrats" e que libertavam, ao longe, estranhas miragens, enquanto serpenteava em complicadas contorções e se abanava de um jeito que parecia querer levantar voo assim que o apito soltasse o silvo de aviso de aproximação. Piuuuuu......PIIIIIIIIIuuuuuuu. Era o sinal e eu corria para o ver, lá na curva mais distante, a aproximar-se resfolgando que nem um regimento de cavalos a caminho de uma batalha feroz. Deitava-me no chão para o poder olhar bem. Havia dias que não era apenas uma, mas duas as "garrats" que puxavam aquele comboio enorme, a caminho do Congo, donde regressaria carregado de cobre, rumo ao porto do Lobito. Em Nova Lisboa, mesmo em tempo de férias, assim que ouvia o combóio esquecia a tchifuta e corria feito louco para o admirar. Eram os comboios do Caminho de Ferro de Benguela - um dos meus fascínios. E sempre me lembrava aquela viagem do Lobito para Nova Lisboa, com noite dormida ao som de um "pouca-terra-pouca-terra" suave numa cama muito confortável - ou assim pareceu. E de manhã, o Sol a nascer e a entrar pela janela num convite descarado. Era Junho e as neblinas dançavam por entre serras desconhecidas. E lá fiquei, de nariz enfiado no vidro, tentanto aprisionar toda aquela imensidão de beleza que me surpreendia e, ao mesmo tempo, me fascinava. Desde então, o comboio, fosse ele como fosse, pequeno grande, de mercadorias, de passagerios - até mesmo "o piolho"- que transportava os estudantes dos colégios D. João de Castro e Adamastor até à Caala - todos me eram igualmente queridos. Mais tarde, já adolescente, às quintas feiras, lá estava com todos os outros, na estação dos CFB, para ver o "Belga" - íamos todos ver as belgas, loiras e grandes, de olho claro e sorriso fácil. Algumas bem que me ficaram na lembrança, mas o combóio só parava dez minutos e, de qualquer maneira, elas iam apanhar o barco ao Lobito. Quando seguiam em sentido inverso eram menos afoitas, para muitas, África era um susto e , não tinha feito sentir ainda o seu sortilégio.