Eu vou escrevendo e vão chegando os telefonemas. A Net é um fenómeno distante ainda de muita gente .
A possibilidade de trocar opiniões em tempo real de um lado para o outro do Mundo fascina-me. Sempre detestei o eco como resposta aos meus gritos.
Neste caso, não sendo bem o eco, não tem, todavia, o gozo de uma discussão em tempo real.
Há quem preconize o fim rápido do "Africandar". Por razões várias, a mais importante das quais é o facto de nem todos termos vivências africanas que permitam alimentar um determinado caudal de escrita.
Outros falam de pouco rigor na narrativa dos acontecimentos. É o velho problema da História e das fontes da História. Neste caso, eu sou fonte, não faço história. Fui testemunha, protagonista, só falo do que vi, do que vivi e do que senti. Admito que o último item é problemático, mas os outros não.
Por exemplo, vi fotografias minhas com inscrições nas costas oferecendo quantias avultadas a quem desse informações sobre o meu paradeiro. Fotografias que me foram roubadas da casa que eu habitava e que foi saqueada logo após a entrada das tropas sul-africanas no Lubango, a 23 de Outubro de 1975.
De resto, a minha casa foi a primeira a ser visitada pelos serviços secretos das forças racistas, que depois, permitiram o saque.
E o saque não foi feito apenas por gente que não tinha nada ou que esperava uma oportunidade para ver como os "outros" viviam.
Estou a reportar-me a Fevereiro de 1976, altura em que regressei ao Lubango e tentei reconstruir a minha casa, exactamente no mesmo sítio de onde tinha partido a 22 de Outubro do ano anterior.
Os vizinhos eram os mesmos. Alguns deles até tinha piscina nas respectivas casas .Um dia, a Zi foi pedir um favor a uma das vizinhas; a senhora abriu a porta e quando a viu ficou pálida e a tremer.
Espantoso: a senhora vestia uma bata que era, sem dúvida, pertença da minha mulher.
Perante o inaudito do ocorrido, solicitámos a intervenção das autoridades e - maior espanto ainda- algumas das nossas mobílias e louças faziam parte da casa do vizinho.
Há até um pormenor da estória curioso. Um dos móveis tinha umas gavetas que estavam forradas com papel. A Zi, ao ver o móvel, abriu as gavetas e apalpou o forro de papel, porque, numa outra altura em que a casa nos tinha sido assaltada, uma pulseira minha, daquelas coisas que se usaram em determinada altura, que não fazia o meu género, mas que era valiosíssima porque era de ouro e muito pesada, tinha escapado ao assalto porque tinha escorregado para debaixo do papel.
O forro da gaveta tinha-se revelado um bom esconderijo e a tal pulseira por lá ficou.
Estava lá! Os saqueadores, nossos vizinhos, não tinham percebido. Aquela foi a prova. Foi uma cena deveras constrangedora. Os vizinhos imaginavam que nós não voltaríamos mais.
De resto, esse não regresso também estava a ser programado pelas altas instâncias do MPLA, que tudo fizeram para impedir que os quadros dirigentes da região voltassem a tempo de reorganizar a vida na cidade e em toda a região, logo a seguir à sua "libertação", ocorrida a 13 de Fevereiro.
O primerio avião que chegou ao Lubango, a 18 de Fevereiro de 1976 era um voo mais ou menos clandestino, organizado à revelia a direcção nacionald do MPLA. Havia um entendimento com o governo de Cuba para instalar no Sul de Angola um total de 35 mil famílias cubanas e nós conseguimos chegar antes das tropas cubanas.
O MPLA tinha entregue, em Outubro de 75, o Sul aos sul-africanos, sem oferecer resistência. Agora, em Fevereiro de 76, tentava entregá-lo aos cubanos.
Tal porém não foi possível.
Aquele avião - ainda um "friendship" - quando aterrou na pista do aeroporto do Lubango, tinha a esperá-lo, no final da pista, um jeep com uma enorme bandeira vermelha, segura pelo comandante Farrusco, o verdadeiro herói da libertação da cidade.
A partir desse dia começou a saga da reconstrução, da organização, até que o MPLA se revelou em toda a sua plenitude : um partido de burocratas e ignorantes, autosuficientes arrogantes, nada preocupados com a governação e sempre disponíveis para acumularem benesses, surrupiarem algum bem e prejudicarem alguém que tivesse ideias.
Depois dessa revelação começou a caminhada para o abismo.
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