quarta-feira, novembro 30, 2005

UM TOQUE DE HUMILDADE

Acho que meti água, quando me intrometi no texto do Leston, a propósito do «directo» de Paulo Cardoso. O erro começou quando, para situar a acção, sublinhei que o Paulo já não estava em Luanda. De facto quem não estava em Luanda era eu e daí a confusão. Ainda não tinha chegado. Quando cheguei o Paulo já não estava, de facto. Tenho que apresentar desculpas pelo lapso a quem leu e a Leston Bandeira, bem entendido.
Quem não estava em Luanda, também, era Tavares da Silva. Estava, vê bem Leston, como são
as coisas!, para Sá da Bandeira, a cuidar dos pulmões. Soube das picardias do sobrinho de outro Tavares da Silva, fabuloso jornalista desportivo, cuja caneta dançava ao «som» dos cinco violinos sportinguistas, no falecido «Diário de Lisboa», com Robi Amorim, colega de profissão.
Recuperada a saúde, Tavares da Silva volveu a Luanda e instalou-se na Rádio oficial, com um programa nocturno bem conseguido, que repartia com uma beldade luandina, irmã da namorada. Era, de resto, quase uma praxe, dizia-se em Luanda, que não havia jornalista, oriundo da metrópole que não tivesse ficado hospedado na pensão Sirius, trabalhado no «Comércio» e dormido com uma das Mascarenhas. Exageros, já se vê! Mas, no caso de «O Comércio» era bem verdade.

Já o Robi estava no «Abc», o vespertino da esquerda possível. Os restantes eram nacionalistas, digamos assim, mas interventivos. O Acácio Barradas, inesperado cultor de Agostinho Neto,
mudava-se, então, para o Notícia. Como não havia televisão em Angola, e essa Angola começava a trepidar, jornais e jornalistas, eles próprios eram uma animação a mais, tema de muito mexerico.

No «Comércio» não tinhamos telex, nem recebíamos serviço das agência. Ao lado, o outro vespertino «Província de Angola» recebia o serviço da «Reuter» via África do Sul, logo já
extirpado de inconveniências censuráveis. Tinhamos, isso sim, que improvisar. Com a «escuta»
Gravavam-se noticiários da BBC e de outros estações, na Onda Curta. E cozinhava-se. Hoje, em dia, a papa aparece feita, basta pôr umas vírgulas. Por essa altura, eu patinhava pelas ruas à procura de «fait-divers». À noite fazia a ronda da polícia, bombeiros e hospital. E à tarde não perdia o tribunal de Polícia. A minha secção enchia e eu impava de orgulho. O jornal do lado
teve de admitir um candidato para a secção. A página da «cidade» ganhou projecção. Uma noite
esbarrei, no hospital, com a informação de que um «jornalista» tinha sido internado. Cheio de curiosidade li a nota da ocorrência: «quando andava na venda o...» O pobre ardina fora atropelado, e com gravidade. Mas, outra noite aconteceu...

O Acácio Barradas estava internado e com alguma gravidade. O carro tinha caído à baía, vindo da Ilha. Uma senhora também estava internada, mas alguém tinha tirado a folha, do maço das ocorrências. Já tinha alguns conhecimentos no «Maria Pia» e soube o nome, que nada me dizia, mas tinha notícia. E à saída, um tipo emproado chamou-se e disse: «Nada de notícia. Isto não é para publicar». Disse-lhe que tinha pena, mas não era a mim que ele se devia dirigir.

Quando cheguei à Redacção, e entretanto tinha recolhido mais informação e sabia que a internada era uma conhecida poetisa local e a causa, além de algum alcool, do acidente, o chefão foi-me dizendo «Já sabemos. Não percas tempo. Não vamos dar a notícia. O Charula telefonou. Não vamos entalar um colega». Barafustei e disse-lhe que eles nos iam lixar e dar a notícia. O Araújo não quis acreditar.Explicou-me que o Charula era uma referência e que trabalhou naquele jornal e que era amigo de todos e nós não o íamos deixar mal. E eu teimei: «Olá se vai. Espere-lhe pela pancada».

O Notícia fez reportagem com o caso e carregou nas tintas, com nomes e fotos. Charula de Azevedo era bom jornalistas e não perderia uma oportunidade daquelas. Ao Araújo deve-lhe ter custado, mas pediu desculpa e no fim do mês vi o salário aumentado.

Mas o meu primeiro grande sucesso chegaria pouco depois e ajudou-me a perceber porque é que tanta gente boa tinha entrado por aquele jornal e saia sem demora. Estava de folga e fui ao cinema. Passei pelo jornal, por vício e pediram-me, como passava pelo Hospital, se podia espreitar e telefonar se houvesse alguma novidade. A novidade é que não havia papeis na secretária, à entrada do Banco do Hospital. Estava, não um, mas dois, polícias na sala. Nada. Não há nada, tem de sair, disse-me um deles, acrescentando que queriam a sala livre. Saí, dei a volta e, por dentro, cheguei ao corredor do Banco e, por sorte, surpreendi um médico ao telefone a dizer que já tinham mandado duas ambulâncis, três médicos e não sei quantos enfermeiros.
Quando perguntei para onde?«Homem, para o hospital, claro...oh, que é que está aqui a fazer?»-
Saí antes que ele chamasse os guardas e deparei com uma ambulância prestes a sair e perguntei
ao enfermeiro se ia para o«hospital» e se me podia levar, que estava com pressa Ele disse-me «suba rápido» e lá fui. Era o segundo hospital da cidade e mais vocacionado para os musseques.
Tinha sido um caso aparente de intoxicação e estava cheio de crianças de um asilo. Foi uma noite terrível. Não paravam de chegar veículos com garotos. Vi vários inspectores e agentes da judiciária a interpelar gente do asilo, gente da Pide, ainda era Pide a fazer o mesmo e a tentar saber dos médicos pormenores que identificassem a causa. Não havia polícia a isolar o hospital. Fui atrás de um grupo de pessoal do hospital que carregava uns cobertores enrolados e fui atrás. Ia para a morgue. Despejou cinco corpos sobre outros que lá estavam já. Contei, nessa altura 17 cadáveres de crianças. E fui telefonar para o jornal. Voltei a telefonar pouco depois para dar conta que o governador tinha acabado de chegar e talvez fosse conveniente o director dar um salto e pedi que mandassem também um fotógrafo. Que não, que não valia a pena. Já não havia tempo para mandar fazer as gravuras (coisas desse tempo).
Às três da manhã já havia mais mortes. Do Jornal disseram-me que não telefonasse mais, acabavam de fechar a edição.

Vi uma enfermeira à cabeceira de uma cama, sentada. Era mãe da menina deitada. Tentei
animá-la.

Finalmente, às cinco e tal da manhà a causa estava encontrada. Um produto tóxico comprado numa drogaria para lavagem do cabelo. O droguista e o empregado, angolano, da cor dos angolanos, que querem, não gosto de dizer pretos, estavam detidos. Mas fora lapso do pobre empregado, que nem sabia ler. O patrão tinha-lhe dito vai lá atrás e tira do saco que está, nem sei onde ele disse, mas o rapaz enganou-se. Já estava de saída e passei pela enfermaria. As lágrimas caiam-lhe. A menina acabava de falecer. Foi a última...

O «Comércio» era o único matutino a dar a notícia. Na última página, a duas colunas "Grave caso de intoxicação", sem referência na primeira página. Fora a decisão de Ferreira da Costa. Finalmente eu tinha uma boa razão para não gostar dele.

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