domingo, novembro 20, 2005

ANDAR ÀS VOLTAS

De cá para lá, quero eu dizer. E não tanto entre Luanda e Lisboa. Mais entre o ontem e o agora, à procura de equilíbrios esquecidos, a moldar a memória de modo a que se possa atenuar alguma coisinha do que lá vai, do que ficou. Não é fácil compreender o presente sem a chave do passado.
Quando se lê o que foi parte da infância do Leston, no Lubango, entende-se melhor o apego que muitos de nós trouxemos, na hora do adeus. Apego que não desaparece nos dias tumultuosos do regresso. E que nem a crítica feroz, que dirige contra a administração de um país rico a esvair-se na miséria, apaga.
Comigo foi diferente. O menino que fui «acordou» em Queluz, junto à estação (de comboios). Desde Alfredo da Costa até então os olhos não registavam. Lembro-me que a primeira vez que o meu pai me levou à bola (ver o Benfica) foi nas Amoreiras. Não me lembro de muito. Vagamente de ter visto os jogadores entrar no campo, porque o velho me pegou ao colo. Do mais patinhei pelo peão e de vez em vez me espantava, talvez de susto, pelo barulho. Foi no Campo Grande, acho que se chamava «28 de Maio», que comecei a ver a bola e «conheci» o Melão.
Tem graça que em Luanda, onde cheguei, a rondar os trinta, deparei com outro ídolo desportivo, mas do hoquei: Cruzeiro, já veterano mas cheio de genica.
Na escola havia retratos do senhor Salazar e do senhor Carmona. Ainda a semana passada vi
fotos de Carmona, mas este é de outro filme e de outra escola. Depois da primária, que acabava com a quarta classe, seguiu-se o curso comercial. Vou continuar o curso mais adiante, agora vou à causa..
Não conheço o Miguel. Conheci vagamente o pai e já depois de ter ido e vindo a África. No jornal onde trabalhava tinha havido mudança de director. Viu-o vagamente passar ao fundo da redacção, trôpego no arrastar-se agarrado a uma bengala e não sabia quem era. Como trabalhava no turno nocturno era natural. De vez em quando marcavam-se serviços no exterior e como estavam em marcha as eleições constituintes coube-me um comício em Almada. Quando lá cheguei era do PS - o comício! Eu já ia sabendo que ir a comícios não era como ir a rebitas, embora aquele tivesse dois nomes femininos: Maria Barroso e Sophia de Mello Breyner. Uma eu sabia que era esposa de Mário Soares, da outra não lhe conhecia o marido, nem de nome.
Escrevinhei um resumo mal disposto do comício que, escrevi, «terminou com uma senhora a dizer poemas épicos de carregar pela boca». E, de repente apareceu-me o director, encostado à bengala: "É pá, tire-me isto. O Sousa Tavares e eu trabalhamos no mesmo escritório!" O director era Proença de Carvalho, que não era coxo, tivera um acidente de moto, creio eu. E foi nesse escritório que me apresentaram a Sousa Tavares e seria minha uma das vozes que, algum tempo depois, se levantou contra o governo de Pintasilgo, que o demitiu da direcção de «a Capital», no próprio dia das eleições intercalares, de que sairia o governo da AD.
Truculento mas ingénuo, Miguel saltitou pela Televisão até arranjar espaço como comentarista, onde tem vindo a amadurecer. Não terá o brilho reluzente do pai, mas é contundente, quase agressivo. E por vezes tem razão, mas não raro o entusiasmo leva-o longe demais. Mas também é verdade que muitos outros mais elaborados e, sobretudo, mais equilibristas, de chatos que são perdem a graça. Li com alguma dificuldades, que já não leio como lia nos autocarros, a crónica sobre costumes, como se dizia no meu tempo, das meninas exibicionistas admoestadas na escola. Embora não a tenha lido toda por mór do solavancos e porque o texto me pareceu desviar-se, pareceu-me correcta a postura, tanto no caso específico, como na generalidade, sobretudo no que toca à justiça: todos o delinquentes têm direitos; as vítimas da delinquência nem por isso.
Mas não só e apenas no foro sexual há violadores e violados, para lá dos direitos à diferença. Também em Espanha atingia o rubro a questão da obrigatoridade de estudar religião católica nos cursos secundários e com nota a contar para a média. E lá aparecia a conotação salazarenga.
E retomo o curso. Tinha, sim senhor, tinha «religião, moral e cívica». Duas vezes por semana, era eu estudante e o Salazar presidente do Conselho. E não podia ultrapassar o número de faltas, tal como nas restantes disciplinas e tinha nota trimestral. Era, sim senhor, resultado da concordata.
Mas não contava, não senhor, não contava para a média, não pesava na nota final. No meu caso pessoal acho que tive alguma sorte com a professora, que deu aulas de religião numa perspectiva histórica. Não me afectou. Não deixei de ser ateu. E quando tive problemas para arranjar emprego não andei a queimar automóveis. Meti-me à sucapa num paquete cheio de soldados e fui para África. Já não há paquetes nos arrebaldes de Paris e a África já não tem para dar, como deu e os primeiros a perceber isso deviam ser os ministros dos governos ditos ocidentais. Alguns fogos podem apagar-se antes de ser ateados.
Mas não adianta muito aprender História passada nem extrapolar dela para o presente. São cada vez menos os que semeiam ventos e cada vez mais os que colhem as tempestades. O dinheiro pode não dar felicidade, lá isso pode, mas oferece abrigo com aquecimento central.
Um minitro europeu bramir contra a poligamia parece inusitado. Capaz de parecer preconceito anti-mourisco. Mitterrand não foi preso ou censurado, nem sequer acusado de delapidar a segurança social com excesso de prole de fontes distintas. Nem ardeu nenhum pópó por causa disso. Mas se for um árabe ou um lestiano...

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