terça-feira, agosto 23, 2005

Combóio

Vagueemos então pelas Áfricas da nossa memória e - porque não - da nossa saudade. Recuperemos um direito de que ninguém fala porque, aparentemente, toda a gente o tem realizado. Reivindiquemos o direito ao nosso passado, à recordação das nossas árvores do esconderijo, do jacarandá à sombra do qual beijámos a primeira namorada Soltemos o verbo e falemos do nosso comboio, puxado por potentes "garrats" e que libertavam, ao longe, estranhas miragens, enquanto serpenteava em complicadas contorções e se abanava de um jeito que parecia querer levantar voo assim que o apito soltasse o silvo de aviso de aproximação. Piuuuuu......PIIIIIIIIIuuuuuuu. Era o sinal e eu corria para o ver, lá na curva mais distante, a aproximar-se resfolgando que nem um regimento de cavalos a caminho de uma batalha feroz. Deitava-me no chão para o poder olhar bem. Havia dias que não era apenas uma, mas duas as "garrats" que puxavam aquele comboio enorme, a caminho do Congo, donde regressaria carregado de cobre, rumo ao porto do Lobito. Em Nova Lisboa, mesmo em tempo de férias, assim que ouvia o combóio esquecia a tchifuta e corria feito louco para o admirar. Eram os comboios do Caminho de Ferro de Benguela - um dos meus fascínios. E sempre me lembrava aquela viagem do Lobito para Nova Lisboa, com noite dormida ao som de um "pouca-terra-pouca-terra" suave numa cama muito confortável - ou assim pareceu. E de manhã, o Sol a nascer e a entrar pela janela num convite descarado. Era Junho e as neblinas dançavam por entre serras desconhecidas. E lá fiquei, de nariz enfiado no vidro, tentanto aprisionar toda aquela imensidão de beleza que me surpreendia e, ao mesmo tempo, me fascinava. Desde então, o comboio, fosse ele como fosse, pequeno grande, de mercadorias, de passagerios - até mesmo "o piolho"- que transportava os estudantes dos colégios D. João de Castro e Adamastor até à Caala - todos me eram igualmente queridos. Mais tarde, já adolescente, às quintas feiras, lá estava com todos os outros, na estação dos CFB, para ver o "Belga" - íamos todos ver as belgas, loiras e grandes, de olho claro e sorriso fácil. Algumas bem que me ficaram na lembrança, mas o combóio só parava dez minutos e, de qualquer maneira, elas iam apanhar o barco ao Lobito. Quando seguiam em sentido inverso eram menos afoitas, para muitas, África era um susto e , não tinha feito sentir ainda o seu sortilégio.

3 comentários:

Unknown disse...

Quando as raízes caem na terra a que pertence o nosso coração, não há lugar no mundo que roube as doces lembranças de um regresso a casa...

Toix disse...

uma achega:
http://www.lusoluena.com/Caminho%20de%20Ferro%20de%20Benguela.htm

crack disse...

Que bom recordar aqui experiências que se recordam com imensa saudade. Parabéns pelo blog.