Foi sempre assim: nunca consegui que esta "minha" gente se comportasse devidamente. Agora, por exemplo, dei o mote do "direito ao passado", assim como nem quer a coisa e escrevi umas coisas sobre o mais recôndito da minha memória e vem o António Gonçalves falar de "saudade escura".
Não é saudade coisa nenhuma, é o passado, o meu passado. E mais vale falar do passado do que do futuro, já que o presente é tão feio, tão feio que o futuro dificilmente existirá.
Mas, já agora, falemos do futuro.
África continua a não fazer parte das contas visíveis de quem manda no Mundo. É cada vez mais uma espécie de armazém clandestino, onde eles, os donos do Mundo, vão buscar algumas coisas que lhes fazem falta para continuarem a sê-lo. Um armazém guardado por uns "fiéis"que só pensam nos seus próprios quintais.
Do ponto de vista político, África, no seu conjunto, encerra várias artificialidades, que serão a sua condenação: fronteiras, sistemas políticos, são as mais evidentes.
A definição de fronteiras do Continente ainda é a que foi aceite pelas potências colonizadoras na Conferência de Berlim. E a carta da organização da Unidade Africana impede que se discuta. Ponto final.
Os sistemas políticos vigentes são uma confusão total, uma misturada de partido único e parlamentos folclóricos, com deputados comprados por preços baixos (nada que se compare ao "mensalão" brasileiro").
Por todo o lado, sobretudo na África sub-saariana, a corrupção é a regra. Os governantes transformaram-se numa espécie de senhores feudais, com direito a tudo, fazendo do território que governam propriedades suas. Vendem o petróleo, os diamantes , as madeiras, sempre tudo sem valor acrescentado - é só arrancar à terra e pronto - e distribuem o produto da venda pelos amigos, ficando, claro, com a maior parte para eles.
Outros, não tendo nada que vender, leiloam algumas das prerrogativas do Estado, como, por exemplo, o reconhecimento, ou não, de Taiwan.
Entretanto, quando se contam os refugiados, esfomeados, doentes com sida e outras doenças graves graves, a parcela dos muitos milhões cabe sempre a África.
Há mesmo zonas africanas onde a organização deixou de existir. Não tendo sido possível implantar um estado moderno, à maneira ocidental, alguns membros da comunidade internacional continuaram a vender armas aos senhores da guerra, que, dessa maneira, mantêm na escravidão populações inteiras.
Futuro?
Prefiro recordar o cheiro da terra - a única coisa de que tenho saudades - e o meu passado de criança e adolescente feliz, com a certeza - cada vez mais nítida - de que essa felicidade não impedia ninguém de o ser também.
Os netos do António, por exemplo, desconhecem o prazer de uma tarde a jogar o "oril", com buracos feitos na terra e com pedras de todos os feitios -não aquelas coisas bonitinhas que se fazem em Cabo Verde - e, no fim do jogo, perceber que, afinal, não era competição, era cooperação. De um lado e do outro, estavam um ou mais jogadores que apenas queriam arrumar aquele monte de pedras de uma certa maneira. E não raras vezes, os dois lados se transformavam num só, porque o importante não era a vitória mas a conclusão do "puzzle".
Hoje não consigo lembrar-me da cor das mãos que se tocavam muitas vezes na recolha das pedras de cada buraco, para as distribuir pelos outros. Eram tardes felizes, passadas sempre à sombra de alguma árvore frondosa onde o jogo estivesse montado. Nunca era preciso pedir autorização para entrar no jogo. Quem chegasse jogava, nem que já lá estivesse uma multidão de cada lado.
Os netos do António desconhecem o prazer de chegar a casa todo enfarinhado da terra, com as mãos quase pretas, das pedras e da terra e ir directamente para a banheira debaixo de uma saraivada de palavras que mais valia não perceber.
Os netos do António desconhecem e vão continuar a desconhecer o prazer de uma namorada mais velha, a viver, ali na sanzala mais perto, generosa e disposta a proporcionar o prazer de uma pele mais sedosa que a própria seda.
Nós, os que fizémos o "África", sempre pensámos no futuro de África e nunca hesitámos, mas a verdade é que em África ninguém nos reconheceu o direito a discutir tal futuro, assim como nos recusam o direito à terra e ao passado. Lá e cá. Não temos passado e pronto.
Lutei pelo direito a discutir o futuro da minha terra e agora estou disposto a mostrar alguma coisa do meu passado, sem abdicar, naturalmente, de, de vez em quando, assumir o papel que sempre foi o meu.
"Ele é um lutador..." está, neste momento, o António a pensar.
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