Ele há coincidências. Por vezes pesam ou magoam. Tinha olhado atentamente para os dois lados da rua não fosse alguém conhecido ou de família ver-me entrar na ginjinha da Eugénio dos Santos, de onde saí, alegremente a cuspir os caroços. Sem cuspir ostensivamente os caroços, para o chão, a ginja não tem metade da graça!
E comecei por não achar graça às lojecas com bugigangas artesanais sob as arcadas do Palácio da Independência. Uma das quais a dar a sua de alfarrabista e eu a aproveitar para fazer a minha de literato de meia tijela e no meio da lixarada não é que vejo um opúsculo minúsculo de Salgado Zenha, com Francisco e tudo na capa: «A Prisão do Doutor Domingos Arouca», edição de 72, da Afrontamento, do Porto, impressa, imagine-se!, na Gráfica Firmeza, que tinha sede na Rua da Boavista!
A parte literária, digamos assim, nem ocupava uma página: « Domingos Arouca -- condenado a quatro anos de prisão maior --, encontra-se na cadeia há mais de sete.
Preso e julgado em Moçambique, expia a condenação a milhares de quilómetros dos seus -- na Metrópole.
O degredo já não existe nas leis portuguesas. Mas existe para Domingos Arouca. Pare ele e tantos outros -- negros como ele".
Domingos Arouca é advogado. Formou-se em direito, ensinado em Lisboa. Que direito se ensina em Lisboa? Que direito se decreta em Lisboa? Que é, em suma,o direito de Lisboa?
Qual será?
Domingos Arouca -- moçambicano, negro e amigo --, qual será?».
Desconheço se o «grito» foi autorizado ou proíbido; se chegou a Lisboa, se esteve ou não em algum escaparate; se mereceu (ou não) crítica. O «meu» tem na contracapa um selo da Livraria Sá da Costa.
Após uma simples biografia do condenado, em que se dá conta de que Arouca após o ensino primário foi trabalhar, como escriturário-praticante, no gabinete de um advogado até aos 16 anos. Ingressou, então, como aluno na Escola Técnica de Enfermagem, de Lourenço Marques
(o opúsculo, recordem-se, é de 72), onde se diplomou.
Até aos 21 anos exerceu a profissão de enfermeiro. Os acasos da sorte permitiram-lhe vir para Portugal, onde trabalhou e estudou para completar o curso dos liceus e formar-se em Direiro pela Universidade de Lisboa, em 1960. Foi o primeiro advogado preto ou negro, como quiserem.
Regressado ao habitat natural foi nomeado consultor do Banco Nacional Ultramarino, em Lourenço Marques e Vogal do Tribunal Administrativo de Moçambique, funções que se viu compelido a abandonar poucos meses depois por «motivos políticos».
Exercia advocacia em Lourenço Marques, quando em Maio de 65 foi preso pela PIDE. Acabava de tomar posse do cargo de presidente do Centro Associativo dos Negros de Moçambique, para o qual fora eleito por aclamação. Era acusado de pertencer à Frelimo e responsável pela subversão psicológica no sul de Moçambique.
Julgado e condenado a pena de 4 anos de prisão e medidas de segurança posteriores de 6 meses a 3 anos.
Sete anos depois, ainda preso, mas já Portugal, despertou a curiosidade por ter iniciado uma greve de fome, «com desusada ressonância em Portugal e sobretudo no estrangeiro» e dela deu pormenorizada conta Salgado Zenha.Tudo o que se sucede é terrivelmente angustiante: a descrição minuciosa das «peças fundamentais do processo de providência extraordinária de habeas corpus». Fico a saber que até o início do julgamento foi, em cima da hora, adiado por haver conhecimento de que a visita do Papa iria merecer governo uma amnistia. Desse modo esperou-se que a amnistia fosse publicada para, então, se dar início ao julgamento, privando o
arguido de qualquer perdão. Houve outros perdões durante os sete anos que se seguiram, mas deles Domingos Arouca não beneficiou nem um segundo. E deu-se conta de outras «igualdades desiguais» como a que ocorreu em 70 em consequência do movimento de solidariedade dos advogados portugueses a favor dos seus 3 colegas então presos por motivos políticos: Domingos Arouca, Monteiro Matial e Saúl Nunes. Os dois últimos foram postos em liberdade, mas Domingos Arouca continuou preso. Dois eram brancos, um era negro. E adiante lá vinha a referência: «Disse-se que foi o Ministro do Ultramar que opôs o seu veto à saída do moçambicano. Porque ele era negro?».
Fiz uma pausa para pensar quem seria, em 72, o ministro do Ultramar?
Provavelmente o pai de alguém hoje bem na vida. Mas o processo tem outras curiosas, gostava mais de as qualificar de «saborosas», coincidências, como o acordão do tribunal militar, que recusa a inconstitucionalidade da medida de segurança que impôs e é invocada no recurso. O blá-blá se não é, parece rídiculo e um tanto asqueroso. Vale que é assinado pelo Cor. de Cavalaria, José Luís Canalhas...
Teria sido melhor se assinasse no singular...
Mas foram dirigidos apelos ao presidente do Conselho, que já não era o «botas», de que não se conhece resposta e ao bastonário da Ordem dos Advogados e foi este que deu a pista do ministro do Ultramar.
Num romance de Urbano Tavares Rodrigues definiu-se qualquer coisa como «crueldade testicular», expressão que exasperou Luís Pacheco, mas que, no fim de contas, talvez faça sentido. Uma crueldade que não se entende nem se explica, que atrofia. E que ficou sem julgamento. Reduziu-se todo o horror da opressão policial e militar a um só personagem.Já depois dele, ainda o Supremo Tribunal de Justiça se permitia mandar o requerente à « merda», mas fê-lo com generosidade: «Não é devido imposto de justiça»...
« Lisboa, 5 de Julho de 1972.
ass.) Adriano Vera Jardim
António Pedro Sameiro
Alberto Victor Pires Fernandes Nogueira
Manuel Falcão Nunes Garcia
Fui presente -- Manuel Lopes Maia Gonçalves».
Não sei nem quero saber se toda ou alguma desta gente ainda vive, nem é isso hoje que importa, mas notar que, bem ou mal, a revolução não trouxe nenhum programa de justiça. Uma dúzia e tal de «pides» foram incomodados, não muito, mas foram. Mais nada. Mais ninguém. Estive em Lisboa, logo a seguir ao 25 de Abril e assisti à leitura da sentença das «três Marias» foram absolvidas. Foi uma festa na sala. Para trás ficaram ignorados os instrutores do processo, os piedosos instigadores. De Salgado Zenha retenho a memória do homem que rompeu a concordata e restituiu o direito das pessoas serem livres umas das outras. Foi um momento de glória, que ele bem mereceu...
E comecei por não achar graça às lojecas com bugigangas artesanais sob as arcadas do Palácio da Independência. Uma das quais a dar a sua de alfarrabista e eu a aproveitar para fazer a minha de literato de meia tijela e no meio da lixarada não é que vejo um opúsculo minúsculo de Salgado Zenha, com Francisco e tudo na capa: «A Prisão do Doutor Domingos Arouca», edição de 72, da Afrontamento, do Porto, impressa, imagine-se!, na Gráfica Firmeza, que tinha sede na Rua da Boavista!
A parte literária, digamos assim, nem ocupava uma página: « Domingos Arouca -- condenado a quatro anos de prisão maior --, encontra-se na cadeia há mais de sete.
Preso e julgado em Moçambique, expia a condenação a milhares de quilómetros dos seus -- na Metrópole.
O degredo já não existe nas leis portuguesas. Mas existe para Domingos Arouca. Pare ele e tantos outros -- negros como ele".
Domingos Arouca é advogado. Formou-se em direito, ensinado em Lisboa. Que direito se ensina em Lisboa? Que direito se decreta em Lisboa? Que é, em suma,o direito de Lisboa?
Qual será?
Domingos Arouca -- moçambicano, negro e amigo --, qual será?».
Desconheço se o «grito» foi autorizado ou proíbido; se chegou a Lisboa, se esteve ou não em algum escaparate; se mereceu (ou não) crítica. O «meu» tem na contracapa um selo da Livraria Sá da Costa.
Após uma simples biografia do condenado, em que se dá conta de que Arouca após o ensino primário foi trabalhar, como escriturário-praticante, no gabinete de um advogado até aos 16 anos. Ingressou, então, como aluno na Escola Técnica de Enfermagem, de Lourenço Marques
(o opúsculo, recordem-se, é de 72), onde se diplomou.
Até aos 21 anos exerceu a profissão de enfermeiro. Os acasos da sorte permitiram-lhe vir para Portugal, onde trabalhou e estudou para completar o curso dos liceus e formar-se em Direiro pela Universidade de Lisboa, em 1960. Foi o primeiro advogado preto ou negro, como quiserem.
Regressado ao habitat natural foi nomeado consultor do Banco Nacional Ultramarino, em Lourenço Marques e Vogal do Tribunal Administrativo de Moçambique, funções que se viu compelido a abandonar poucos meses depois por «motivos políticos».
Exercia advocacia em Lourenço Marques, quando em Maio de 65 foi preso pela PIDE. Acabava de tomar posse do cargo de presidente do Centro Associativo dos Negros de Moçambique, para o qual fora eleito por aclamação. Era acusado de pertencer à Frelimo e responsável pela subversão psicológica no sul de Moçambique.
Julgado e condenado a pena de 4 anos de prisão e medidas de segurança posteriores de 6 meses a 3 anos.
Sete anos depois, ainda preso, mas já Portugal, despertou a curiosidade por ter iniciado uma greve de fome, «com desusada ressonância em Portugal e sobretudo no estrangeiro» e dela deu pormenorizada conta Salgado Zenha.Tudo o que se sucede é terrivelmente angustiante: a descrição minuciosa das «peças fundamentais do processo de providência extraordinária de habeas corpus». Fico a saber que até o início do julgamento foi, em cima da hora, adiado por haver conhecimento de que a visita do Papa iria merecer governo uma amnistia. Desse modo esperou-se que a amnistia fosse publicada para, então, se dar início ao julgamento, privando o
arguido de qualquer perdão. Houve outros perdões durante os sete anos que se seguiram, mas deles Domingos Arouca não beneficiou nem um segundo. E deu-se conta de outras «igualdades desiguais» como a que ocorreu em 70 em consequência do movimento de solidariedade dos advogados portugueses a favor dos seus 3 colegas então presos por motivos políticos: Domingos Arouca, Monteiro Matial e Saúl Nunes. Os dois últimos foram postos em liberdade, mas Domingos Arouca continuou preso. Dois eram brancos, um era negro. E adiante lá vinha a referência: «Disse-se que foi o Ministro do Ultramar que opôs o seu veto à saída do moçambicano. Porque ele era negro?».
Fiz uma pausa para pensar quem seria, em 72, o ministro do Ultramar?
Provavelmente o pai de alguém hoje bem na vida. Mas o processo tem outras curiosas, gostava mais de as qualificar de «saborosas», coincidências, como o acordão do tribunal militar, que recusa a inconstitucionalidade da medida de segurança que impôs e é invocada no recurso. O blá-blá se não é, parece rídiculo e um tanto asqueroso. Vale que é assinado pelo Cor. de Cavalaria, José Luís Canalhas...
Teria sido melhor se assinasse no singular...
Mas foram dirigidos apelos ao presidente do Conselho, que já não era o «botas», de que não se conhece resposta e ao bastonário da Ordem dos Advogados e foi este que deu a pista do ministro do Ultramar.
Num romance de Urbano Tavares Rodrigues definiu-se qualquer coisa como «crueldade testicular», expressão que exasperou Luís Pacheco, mas que, no fim de contas, talvez faça sentido. Uma crueldade que não se entende nem se explica, que atrofia. E que ficou sem julgamento. Reduziu-se todo o horror da opressão policial e militar a um só personagem.Já depois dele, ainda o Supremo Tribunal de Justiça se permitia mandar o requerente à « merda», mas fê-lo com generosidade: «Não é devido imposto de justiça»...
« Lisboa, 5 de Julho de 1972.
ass.) Adriano Vera Jardim
António Pedro Sameiro
Alberto Victor Pires Fernandes Nogueira
Manuel Falcão Nunes Garcia
Fui presente -- Manuel Lopes Maia Gonçalves».
Não sei nem quero saber se toda ou alguma desta gente ainda vive, nem é isso hoje que importa, mas notar que, bem ou mal, a revolução não trouxe nenhum programa de justiça. Uma dúzia e tal de «pides» foram incomodados, não muito, mas foram. Mais nada. Mais ninguém. Estive em Lisboa, logo a seguir ao 25 de Abril e assisti à leitura da sentença das «três Marias» foram absolvidas. Foi uma festa na sala. Para trás ficaram ignorados os instrutores do processo, os piedosos instigadores. De Salgado Zenha retenho a memória do homem que rompeu a concordata e restituiu o direito das pessoas serem livres umas das outras. Foi um momento de glória, que ele bem mereceu...
1 comentário:
(CARTA PERTENCENTE AO ESPOLIO DO DR HUGO JOSÉ AZANCOT DE MENEZES,UM DOS FUNDADORES DO MPLA).
Ao Comité Director do M.P.L.A.
BRAZZAVILLE
Brazzaville,11 de Agosto de 1972
Prezados camaradas
Durante os últimos quatro anos, procurei dar a minha modesta
Contribuição à luta de libertação do povo Angolano ,como militante
Médico do MPLA. Mas a usura ( Física e sobretudo Psíquica ) provocada por estes quatro anos de permanência em DOLISIE, talvez de
Certo modo aliada aos 45anos que se aproximam , reduziram em muito a
Minha capacidade de luta e de trabalho; presentemente ,sinto-me incapaz
De dar ao MPLA toda a contribuição que a luta exige de um militante activo.
Continuando - Se a isso for autorizado pela Direcção do Movimento - como membro do MPLA, ao qual gostaria de poder dar uma contribuição
,ainda que ,de agora em diante limitada ,procurarei trabalhar como médico ,fora da organização ,retomando contactos de há muito perdidos com a medicina.
Queiram aceitar ,prezados camaradas ,as minhas melhores saudações.
HUGO DE MENEZES
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