terça-feira, janeiro 24, 2006

As Partidas dos Arquivos

A revisitação dos arquivos tem sempre a mesma surpresa: andamos a viver a mesma vida, sempre ao serviço dos mesmos. O que transcrevo a seguir é um comentário meu, publicado em 1993, no jornal " A Capital.




CÂNTIGO DA PRIMAVERA



Em França, o governo caiu sob o peso de três milhões de dsempregados, em Espanha, Felipe Gonzalez olha os gráficos, as sondagens e o tempo a correr: 20 por cento da população activa não tem satisfeito o seu «direito fundamenteal» ao trabalho.
Na velha Albion, os ingleses desocupados são 11,4 por cento, em Itália, onde as estatísticas, tal como os políticos, não são de fiar, há 9,8 de desempregados e em Portugal, cujas estatísticas funcionam como canção de embalar, o desemprego subiu, no mês de Fevereiro, 14,7 por cento.Só os países desenvolvidos têm 33 milhões de desempregados, conhecidos das estatísticas.
No resto do Mundo, onde nem sequer há estatísticas, ou são piores do que as portuguesas e italianas, há milhões de homens e mulheres que nunca tiveram emprego, isto é, nunca foram pagos regular e sistematicamente pela cedência das suas capacidades físicas e/ou intelectuais.Grande parte deste resto do Mundo representa o paraíso para os empresários de sucesso do nosso tempo: não há estatísticas e qualquer um pode ser despedido a qualquer hora, pelo que todos os «bons gestores» podem pôr em prática a receita mais eficaz para resolver os problemas derivados da quebra de lucros: a empresa está mal, depede-se tanto por cento do seu efectivo de trabalhadores e tudo volta à normalidade.
É desse resto do Mundo que vem a lição para a Europa e para os Estados Unidos, onde os despedimentos são de todos os dias e atingem sempre os que, ingenuamente, continuam a reclamar o seu «direito ao trabalho», sem nunca terem pensado, ou pelo menos, expresso em voz alta, que deveriam reclamar o seu «direito à preguiça».O saneamento das empresas do nosso tempo está a fazer-se à custa de níveis assombrosos de desemprego e, contudo, o sistema progride, pelo que é, no mínimo, curial, pensar que o desemprego é o sangue do sistema em que vivemos e que, afinal, já produziu esta aldeia global em que não só a comunicação é instantânea.
O desemprego também o é. Atente-se nesta notícia das páginas interiores dos jornais, publicada tipo «faire divers»: o novo presidente-director-geral da companhia americana IBM, Luis Gerstner, tem um salário mensal de 300 mil contos, mais um prémio anual de 225 mil, além de outros prémios e promessas.A IBM tem fábricas um pouco por toda a parte.
Na Europa também, onde, no final de 1992 empregava cerca de 90 mil pessoas. Agora, nos «próximos doze meses», vão ter que «mostrar o que valem» porque se prevê uma redução de, pelo menos, 10 por cento dos seus efectivos.Para que Gerstner tenha direito a todas as suas remunerações e ao exercício pleno do seu «direito à preguiça», milhares de outros vão ter que se incorporar nas marchas de protesto para reclamarem o seu «direito ao trabalho».
São as marchas da Primavera, de todas as primaveras: os sindicalistas já a têm marcada nas agendas: «Abril e Maio, tempo de protesto». Combinaram-na com os políticos, de cujas mesas se tornaram íntimos, e todos os anos vão cantando o cântigo do desemprego, campo fértil para as promessas de Verão, que hão-de frutificar lá para o fim do ano, com a distribuição dos lucros, uma fogueira que aquece sobretudo os que sabem conservar o combustível do sistema: desempregados qb.
Alguns milhares de pessoas por essa Europa fora sairam ontem à rua para dizer qualquer coisa como «não pode existir Europa social sem respeito pelos trabalhadores». Muita gente nas ruas, discursos alguns e depois o regresso a casa, enquanto a houver, para um fim de semana pacífico, sem grandes problemas de consciência: os sindicalistas protestaram, os políticos ouviram, os trabalhadores deixaram por momentos de trabalhar, os empresários anteciparam o fim de semana, a comunicação social noticiou e os desempregados existiram.
Podemos, pois, dormir tranquilos, o sistema funciona, apesar de algumas deficiências: não é que agora, um pouco por toda a Europa, só se fala de políticos corrompidos por empresas, algumas das quais, periodicamente, necessitam de saneamentos económico-financeiros, tendo, para o efeito, que recorrer a despedimentos em massa?Pequenas falhas, contudo.
Com algum tempo e paciência se chegará a uma forma legislativa adequada ao enquadramento da cooperação entre políticos e empresários. Dessa maneira, os sindicalistas poderão mudar algumas estrofes do cântigo da Primavera e os desempregados permanecerão unidos, cada vez melhor organizados para os desfiles sasonais.
Mais de dez anos depois eu pareço um oráculo. Que pena!!!


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