segunda-feira, janeiro 16, 2006

AVANÇAR PARA TRÁS

Não tem nada de complicado, nem se confunde com ficar parado. É diferente de não ser assim nem assado. E é exactamente o contrário de ir em frente. É como se fosse a nadar para o largo, o longo além e a maré o trouxesse tranquilamente para a praia, frustrando um qualquer suicídio patético. E a propósito do aumento das rendas dei por mim a viajar. As questões sociais fascinam-me. Não que eu pague renda. Fui pagando por uma até ser minha. Mas nem moro lá.
Serve para os filhos, quando aparecem por Lisboa. Ou para o neto, um que ainda estuda por cá. Os irmãos e os primos optaram pelo Cabo. É isto! Seja por onde for que eu tente ir acabo sempre
perdido em África.
«Primeiro entranha-se; depois entranha-se» foi a expressãp publicitária que Pessoa utilizou para «vender» cocacola. O poeta precisava de comer, pelo menos quase tanto como o comum dos mortais! Mas a frase ainda hoje me parece mais propícia para definir África, o mais ultrajado dos continentes. Nem chegou a uma dúzia de anos a minha experiência africana! À chegada estranhei, claro, o clima e a sinfonia nocturna dos insectos. A osga que vi na parede do quarto da pensão onde pernoitei era mais clara e menos repulsiva do que as europeias, que vira antes. Ali, o bicho, tornava-se o objecto doméstico anti-mosquito tão respeitado como a seguir descobri que era o abutre, o operacional preferido da mãe natureza para zelar pela qualidade de vida!Era isso, era. Primeiro estranhava-se; depois aprendia-se. A África entranha-se, essa é que é essa e o
poeta que cresceu e estudou em África passou por isso!
Trinta anos depois do meu regresso continuo «desterrado». Avesso à chuva e ao Sol, ao frio e ao Verão tórrido. Eternamente desconfiado das instituições e dos políticos, dos polícias e dos ladrões.
O período eleitoral não ajuda nada o meu espírito confundido, que não entende este modo arruaceiro de propor um presidente como quem vende banha da cobra, uma pomada comprovadamente mágica, que tanto cura a sarna como a impotência. Ontem ouvi o ministro de Estado e no pedaço que escutei não se falou de governação mas de eleição presidencial e espantou-me que alguém culto, livre e voluntariamente de esquerda procurasse condicionar o voto ao seu semelhante, em nome de uma mentira voluntária. Em boa e honesta verdade o homem, o político, mesmo quando presidente, nunca foi um modelo de pacificação ou de estabilidade. Não foi o pai nosso que esteve em Belém!
Não. Não foi. Foi sim o político ajustador de contas. Primeiro entre iguais, começando pelo então secretário geral do PS (é hoje presidente do Banco de Portugal), que se viu constragido a bater estrondosamente com a porta. O próprio Sampaio, que se seguiu no largo do Rato, não teve vida fácil, mas a derrota eleitoral mais ou menos prevista levou-o à demissão e à pacificação.
No segundo mandato tudo mudou. Cavaco embevecido pela cordialidade belenense nem quis ter candidato e quando de Belém lhe começaram a apertar os calos nem quis acreditar. Depois foi o
calvário. Afinal o presidente tinha poderes, tinha meios e não tinha contemplações.
Se alguém neste país sabe utilizar os poderes presidenciais para derubar adversários é esse idoso candidato ao retorno. Mas o governo também sabe e por isso procura pôr-se à sombra. É um facto que não soube gerir o conflito interno que estalou com a desfeita a Manuel Alegre. É manifesto que nem Mário Soares, nem o PS e menos o governo acreditaram que Alegre pudesse constituir um estorvo.
Aquando da sucessão de Eanes, o quadro existente pareceu favorável à direita, consubstanciado em Freitas do Amaral, que reunia o apoio do PSD e CDS. Do lado esquerdo perfilavam-se Salgado Zenha, Lurdes Pintasilgo e Mário Soares. Proveniente de uma série de governos de maioriaa absolutamente desastradas e quando era ao PS que mais se apresentava a factura, Soares, desgastado, aceitou candidatar-se em condições melindrosas.
O problema que se levantou à esquerda era delicado. Por um lado o PC de Cunhal detestava Mário Soares, mas temia-o. Apostar em Zenha era uma aposta razoável. Por uma vez o PC podia pescar em águas do PS, mas Maria de Lurdes Pintasilgo intrometia-se perigosamente. Um pouco como Alegre, ela acreditava que tinha sido ludibriada por Eanes. Ela que dera a cara pelo presidente ao chefiar um governo de transição, tinha ido a Belém saber de Eanes se podia avançar uma candidatura, crente que um sim significaria apoio. Mas não significou. Eanes preferiu apoiar Zenha, que reunia também a preferência do PC.
E nas hostes de Freitas do Amaral discutia-se qual o adversário desejado para a segunda volta. Curiosamente o adversário menos temido era Mário Soares. A desavença centrava-se em saber qual dos outros, Zenha ou Pintasilgo era mais perigoso!
Cunhal lastimou que os votos em Pintasilgo tivessem afastado Zenha da segunda volta, mas mobilizou e mobilizou-se para apoiar Soares. Não sei se chegou ou não a arrepender-se. Fosse como fosse Soares derrubou a direita, esfarelou o governo do PSD, entreabriu a porta a Sampaio e saiu pela esquerda alta. Acostumou-se a dizer que era um corredor de fundo. Vinte anos depois já não deve correr tanto, mas ainda anda ali para as curvas.
Em Angola uma vez por outra fala-se de eleições e depois muda-se de conversa. Mas África não é só a petrolífera Angola. Em Cabo Verde vão acontecer eleições legislativas este domingo e as presidenciais já se vislumbram no horizonte. Tem que se começar por algum lado. Bolas! não posso dizer isto sem me lembrar logo do inditoso Tavares da Silva, que dizia a mesma coisa sempre que beijava a mão à senhoras...

1 comentário:

Anónimo disse...

Grande António: é excelente que nos tragas a evocação do Tavares da Silva que, nesses dias longínquos (eu era adolescente, vê tu...) chegava a Benguela, salvo erro, num barco de papiro chamado "Cinéfilo" (onde pontificava João César Monteiro), com uma rubrica intitulada "O colador de cartazes". Outras maneiras de beijar a mão a senhoras, de encontrar, enfim, o ponto de apoio para virar o mundo e a norma do avesso. Se não era no Cinéfilo, onde raio era? Ou foi já cá, depois de pousados os contentores, num qualquer apêndice do "Século"? Dá-me jeito que tenha sido lá, só para empurrar a sede e a ginguba... e para te puxar o fio das histórias. Abraço, é claro.
Fernando Alves