Rememorar o passado, mesmo sem rede, é menos difícil do que parece. Já vos disse que fui de barco, nem sei se sublinhei o suficiente para se entender que foi viagem clandetina. Mas regressei de avião, sem mala. Só. A família ficou e com ela tudo o que tinhamos.
Por cá encontrei outros que vieram à frente. Juntamente com eles e outros que vieram depois reintroduzimo-nos e retomámos o caminho, perdendo-nos aos poucos uns dos outros.
Quem nunca se esqueceu de se juntar anualmente e acamaradar foram os hoquistas angolanos, malta gira e bem animada. Cruzeiro, já veterano, empurrou os bancários e fêz deles uma equipa que animou os campenatos de Luanda. Sá da Bandeira e Moçâmedes também contribuiam. Ainda não era como Moçambique mas já dava para grandes e animadas jogatanas. O que começou por diversão empurrou-me a intervir da única maneira que estava ao meu alcance: levei o desporto para o Jornal. Vesti outra pele e os desportos entraram para ficar. Ainda vi o Peyroteo e o critiquei como seleccionador, que dirigia a equipa angolana no jogo contra Moçambique. O Rafael Soares perorava sobre hoquei, basquete, foot, como se percebesse daquilo tudo. Não brinquem comigo. Ir ao Luso ver um jogo de bola não era brinquedo. E uma das vezes fui lá de carro, com outros quase tão irresponsáveis como eu. Meninos, aquilo era o mesmo que ir daqui a Berlim. As estradas já davam. O problema não era esse, mas sim o tempo que se perdia nas áreas em que só se podia prosseguir em coluna militar. Ter cartão de jornal dava alguma credibilidade. Fomos dando desculpas que íamos só ali a diante, buscar uma encomenda e vínhamos já. Lá fomos indo estrada fora. Atravessou-se a Lunda e chegámos ao Moxico sem problema. No domingo assistimos ao jogo e invoquei o meu drama de atarefado e regressei de avião.
O único problema é quando alguém pretendia falar com o Rafael, que era quase tão difícil de encontrar como a Maria Gabriela, que fazia o «correio do coração» ou o Sousa Oliveira, que se encarregava dos crimes. Eram os mais solicitados. Muitos ramos de flores e caixas de chocolates chegavam para a Maria Gabriela. De uma vez um sujeito que se identificou como da Pide pretendia falar com a «senhora». Expliquei que se tratava de pseudónimo e que não podíamos quebrar o sigilo. E fui teimando e acabei por perguntar qual era o assunto. O sujeito acabou por admitir que suspeitava que um dos temas tratados tivese a ver com ele. Avancei com uma solução. A «senhora», quando trazia o texto, entregava o correio tratado e recolhia o novo. Eu teria a carta do assunto dele, dobrada, para não se ver a assinatura, e mostrava-lha.
Se ele reconhecesse a letra, muito bem, se não, escusava de saber de quem era a carta. Ele aceitou. E eu pedi à secretária da direcção que copiasse o original. Quando ele voltou,mostrei a carta e ele ficou muito satisfeito, abanou a cabeça satisfeito. Que bom, que bom, não era com ele...
E nem era por aqui que ia começar. Tinha por intenção mostrar que é bem o presente que nos ajuda a recordar. O caso Charrua, por exemplo, ia acontecendo comigo, que nem trabalhava para o Estado. Terá tido mais a ver com café, que em Angola era qualquer coisa! Por mór do Instituto e do Quim Cabral, que lá estava, fui ao Uíge ver como o Instituto tinha incentivado os... porra, como é que se diz? Os autoctones?os naturais? os indígenas? Bom, os pretos da região
a fazer café, a plantá-lo, a cuidar e a subsidiá-los nesse arranque. Até então eram os comerciantes que geriam, à moda deles, a situação. E faziam-no, bem entendido, à moda deles!, explorando desalmadamente o gentio.
Devo abrir um parentesis lembrando o papel preponderante que o comerciante representou no povoamento e desenvolvimento das regiões em Angola. Era gente rude, sem instrução bancária e fizeram, à moda deles, o que o Estado e a Economia deixaram por fazer. O Instituto permitia-se intervir no Uíge porque possuia uma filosofia diferente dos governos de então e porque dispunha de um prestígio extremamente importante no mundo do Café, designadamente em Londres. E foi no decorrer de uma visita que se fez à região, promovida pelo Instituto, para mostrar o sucesso da operação, quando chegou a altura dos petiscos e dos copos e das graçolas que eu fui denunciado por ter proferido uma chalaça injuriosa para com o Governador Geral. O dito ficou ofendido e chamou-me ao Palácio para me dar conta do sua indignação. Como eu não era funcionário público, informou-me que ia entregar-me à DGS.
Sai dali e fui direitinho ao gabinete de São José Lopes e contei-lhe a facécia. «Esses gajos do Uíge não têm juizo», disse ele. «O menino vai escrever ao governador a dizer que concorda que o assunto seja levado à DGS, e deixe comigo...»
Eu deixei, mas o governador não era parvo. Percebeu e, nessa noite, no decurso de um beberete
não sei a propósito de quê , e onde eu estava, disse coisas sobre a maldicência e como ele estava disposto a acabar com aquilo. Para começar já tinha mandado um jornalista para a "Judite".
E lá fui à Judiciária e pedi para ser acareado com vil denunciante. Era colaborador do Notícia
e viu a redacção do Jornal desmenti-lo. O processo foi para a gaveta. Jornalista pesava mais que director de entidades públicas.Outros tempos...
(continua)
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