Fui atrás de Thomaz. Ele era presidente e ia para Moçambique, no barco mais importante. Eu ia mais atrás quatro dias, no "Pátria" e quedei-me por Luanda, num sábado à noite. No domingo, pela manhã, fui ao Kinaxixe comprar bananas. Na segunda-feira apresentaram-me ao Araújo, do «Comércio» e lá fiquei, antes mesmo de saber que Ferreira da Costa era director. Por essa altura Tavares da Silva, o Adelino, estava na Huila, a curtir dos pulmões. Só conhecia, e de véspera, Rosa Duarte, tudo o mais era novidade. Ia fazer a cidade. Para começar tinha de fazê-la, a cidade, a pé!Polícia e hospitais, à noite. Por feliz sugestão de um enfermeiro do «Maria Pia» comecei a frequentar o Tribunal de Polícia, com sucesso. Costuma dizer-se que mais vale cair em graça do que ser engraçado! O juiz do tribunal era, por inerência o director da Judiciária, nessa altura um magistrado cabo-verdiano. Ficou agradado com o destaque. Umas duas ou três vezes deu-se ao cuidado de clarificar alguns pormenores da descrição de julgamentos, mas sempre de maneira cordial. Apresentou-me a dois dos inspectores da Polícia, através dos quais obtive informações que valorizaram bastante a minha condição de repórter novato.Toda aquela sombria incerteza que eu carregara de Lisboa se esfumava. O Jornal era uma coisa! Telex não havia, o homem do «estrangeiro» obtinha notícias através dos noticiários em Onda Curta, da Europa, África do Sul, fosse de onde fosse que se ouvisse noticiários. Havia um serviço da Reuter para a África do Sul, com um terminal no jornal do lado, «a Província de Angola».A minha mulher, com os filhos, vinha a caminho. Estava nas Canárias à espera de um barco que fizesse escala, para rumar a Luanda. Não era fácil. Mas foi. Um colega pertencia a uma associação internacional de beneficência ou similar, cujo presidente era o director da agência marítima em Luanda.Lá fui de cartão e obtive um sim senhor, ia dar ordens para que a senhora e as crianças pudessem embarcar no primeiro paquete que passasse. Nessa mesma noite, um director de pessoal do Banco Comercial de Angola apareceu no jornal, de que o Banco era accionista, para pôr um anúncio de «precisa-se» de empregada, com conhecimentos de inglês e francês e eu fui logo dizendo que a minha para além desses sabia sueco e finlandês. Tiro e queda: ainda a mulher não tinha embarcado e já tinha emprego no banco.Ah!Gaita! Esqueceu-me de dizer que estavamos em guerra. Pois!Sim,sim, estavamos, mas não se dava por isso. Via-se muitos soldados pelas ruas da baixa ou sentados nas esplanadas.Alguns deles, geralmente com divisas, entretinham-se a trocar divisas. Os euros deles eram escudos e os nossos angolares. Por aquela altura começavam a chegar também as esposas dos capitães, tenentes, tenentes ou tenentes-coroneis. As escolas estavam sempre disponíveis para essas senhoras. Por vezes notava-se muita procura de casas. Por vezes apareciam muitas casas novas ditas clandestinas. As câmaras começavam a ser lá o que vieram depois a ser aqui.Dizia-se também que só podia ser luandeiro quem tivesse estado na pensão Sirius, trabalhado no «Comércio» e namorado uma das Mascarenhas. Eu estive na Sirius, trabalhei no «Comércio», mas a minha mulher chegou cedo...Uma noite estava de folga. Fui ao cinema e passei,como era hábito, mesmo de folga,pelo Jornal.«É pá...Vais para casa? Passa no Hospital...pá...telefona de lá...»O «pá» foi e esbarrou com qualquer coisa de estranho. Gente a mais, barulho a menos. Alguns polícias inusitados. «O que é que se passa», perguntei ao enfermeiro da entrada. «Não passa nada» disse o polícia, atrás de mim:«já pode desandar»...Alguém gritou a perguntar se já estava o carro. Dois enfermeiros e três enfermeiras avançavam para a porta, com sacos de mão. Perguntei a uma delas o que estava a acontecer e ela respondeu-me baixo.«não sei bem...é uma tragédia no S.Paulo...com crianças»...As três entraram no carro e eu entrei à balda junto dos dois enfermeiros e o xui nem deu por isso.Eram 24 se bem me recordo e estou a rememorar, as crianças internadas, aliás já só contei 19. Eram crianças de um centro, mas naquele tempo não se sentia vergonha de dizer asilo. Eram de um asilo e ao princípio da noite adoeceram, não reagiram a tratamentos e acabaram por ser levadas para o hospital. A Pide estava por lá, bem entendido. A guerra tem muitas facetas. Uma enfermeira,que como eu, estava de folga debruçada sobre uma criançae sentou-se na cadeira coma mão de menina entre as suas. Era a mãe da criança e enfermeira naquele hospital. Segui uma das enfermeiras até um barracão do outro lado do pátio. Ela ia buscar não sei o quê. Cinco corpos de crianças estavam sobre colchões no chão. Eram as primeiras das duas dezenas que faleceram. A menina da enfermeira foi a última a perecer, já de manhã. Tinha telefonado pata o jornal. Avisei o Araújo de que o governador vinha a caminho.Ferreira da Costa apareceu, bem entendido. Deu a sua de impressionado, cumprimentou o governador, falou com dois secretários e foi embora. O Araújo veio dizer-me que o director lhe tinha dito para me dizer que eu tinha feito bom trabalho.Passei a noite a telefonar para o jornal. Dei informações detalhadas, mas já sobre a manhã é que se apurou que tinha sido pó comprado nessa tarde, para lavar as cabeças das garotas, a causa da tragédia. Simples: o droguista disse ao rapaz coisa do estilo: «vai lá dentro e tira do saco que está a direita duas medidas de pó» Ou o garoto, que não sabia ler,não conhecia a direita ou o saco estaria trocado.Pela manhã passei pelo jornal. Tinha sido o único jornalista presente, Ninguém da Rádio,nem dos jornais estivera no hospital. Desdobrei o jornal até à última página, sob o título: grave caso de intoxicação no asilo - cerca de duas dezenas de crianças hospitalizadas.(continua)
1 comentário:
Pariaton, era o nome do veneno...
Continua a contar, estou a gostar...
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