A deixa foi a brincar, a sublinhar o vício do chamariz: títulos com sabor a escândalo! O dia a dia luandino era semelhante a tantos outros e o impacte maior resultava do crescimento abrupto da cidade, que ia inchando de gente da noite para o dia. Mas não era a agulha a esconder a montanha. Angola repovoava-se em todas as direcções. O avião estava para o grosso do território (qu'é pra não tar a dizer colónia, qu'a censura não gostava), como o maximbombo para a cidade. O taxi aéreo florescia e as estradas, decentes, que começaram a aparecer permitiram não só morar nos arrebaldes, como ir até Nova Lisboa, até Benguela ou Lobito. Do Huambo podia seguir-se até Sá da Bandeira e descer para Moçâmedes, que tinha uma praia cheia de meninas bonitas. O mundo não acabava ali. Ainda havia estrada, pelo deserto fora, até Porto Alexandre.
Não estou a fazer o roteiro e já ontem referi a correria até ao Luso, bem pelo interior.É melhor encostar aqui, antes que desate a falar dos comboios.
Gaita! É sempre o mesmo. Logo que entro em Angola perco-me. Ah! Hoje era para matar alguém. As cidades principais não eram, nesse tempo, especialmente violentas, daí que não fosse preciso muito para causar pasmo. Uma manhã soube-se que um homem tinha sido morto a tiro,
nessa noite, no morro da Samba.
Depois soube-se que se tratava de um par, que estava a namorar, junto ao carro. Um ruído qualquer alertou o homem, que avançou na direcção do ruído.Um tiro abateu-o. A dama que estava com ele correu, ajoelhou-se e procurou reanimá-lo. Ouviu outro carro arrancar e levantou-se para pedir socorro. Mas o carro seguiu. Vestiu-se de desceu, aflita, à procura de socorro.
Quando a polícia chegou ao local verificou o óbito e alertou a Judiciária.
A vítima era um homem casado e a esposa não se encontrava em Luanda, na altura. A mulher que o acompanhava na altura do crime era professora numa escola do Estado. Os dois mantinham uma ligação discreta extra conjugal.
E, de repente, a cidade pareceu encolher-se. Só se falava do crime da Samba. De facto, depois de ter sido ouvida no local do crime e de ter seguido para casa, a jovem professora voltou à Judiciária, para ser de novo confrontada com os agentes e ficou detida. Tudo isto se ia sabendo pelos diários. Faltava o Notícia ao sábado.
Os pobres repórteres andavam numa fona para tentar saber alguma coisa. Enquanto a(ainda misteriosa) dama estava a ser ouvida, um dos agentes soprou-me: «De vez em quando a menina vai à varanda, para o director poder assinar papéis urgentes». O Baião sumiu-se dali e passado um pedaço voltou e acenou-me com a cabeça. Bom, já tinhamos «boneco». E que foto! A jovem encostada à varanda a chorar...
Ao fim da tarde sabia-se pouco, mas já tinhamos «bonecos».
E sabia-se que a jovem tinha indicado a matrícula do carro que vira sair, depois do tiro. Essa matrícula não correspondia. De facto correspondia. O que divergia era a interpretação. Por hábito de professora de meninos tinha dito« jê» em vez de «jota» e a polícia procurara um «g».
E foi outro escândalo. O carro era de um empregado bancário, e conhecido colaborador desportivo da «Província de Angola». A fuga tinha uma motivação credível , ao tempo a homossexualidade era embaraçosa.
Houve, claro, outros ingredientes que alimentaram a especulação. Por todos os cantos se sopravam nomes de presumíveis culpados. A professora foi solta, mas não pôde voltar à Escola. A «santa madre igreja» impunha regras morais, que cada qual desrespeitava como podia mas a benzer-se. Foi complicado tratar do funeral da vítima. A igreja onde o defunto comungava não o aceitou para o velório. Mas outro padre, de outra freguesia aceitou-o.
E a vida seguiu o seu rumo. Até o director da Judiciária mudou, Era um magistrado mais dinâmico, que mantinha, uma boa relação com a Imprensa e televisão não tinhamos. Recordo-me que, pelo Natal ,o surpreendi com um embrulho. Uma caneta, nada mais que isso.Os dois agentes mais próximos dele tiveram as garrafas do costume.
E um belo dia, quer dizer, uma alta madrugada bateram-me à porta de casa. Era o director daPJ
e uns três colaboradores próximos. Vinham radiantes. Tinham acabado de obter a confissão do assassino da Samba. Um simples mirone. Um tipo que se movimentava de motorizada e que, à noite, ia espreitar os casais românticos. Durante o dia, de vez em quando surripiava umas coisas aqui, outras ali, enfim, fazia pela vida. E foi justamente por isso que foi apanhado. Por coisa sem importância. O que o tramou foi a montanha de jornais (e de Notícias!) amontoados. E todos se referiam ao crime da Samba. Um dos agentes suspeitou. Foi tiro e queda!
Foi assim que soube que nas saídas nocturnas o pequeno larápio levava com ele a mulher. O requinte era poder gamar uma recordação dos casalinhos amorosos! Numa dessas surtidas, apanharam um susto. Mas o sujeito não desistiu e toca de comprar uma pistola. Foi ao mato experimentar a arma, para ver como era. Sentiu-se seguro. Na noite seguinte, com a mulher, voltou à lide. Foram ao morro da Samba ver o amor. O homem que espiavam levantou-se
e caminhou na direcção deles, sem os ver. Assustou-se. Mas agora tinha arma. E disparou. Um tiro. Um só. Foi o bastante. Desgraçou-se.
Para mim foi um inferno. Era quinta-feira. O Notícia estava pronto, A conferência de imprensa na Judiciária ia ser marcada para o meio-dia. Cabia-me acordar o meu director e a ele acordar o chefe das oficinas. Escrever, paginar e imprimir um suplemento para pôr na rua ao princípio da tarde.
Outros crimes houve com tanto ou mais impacte. Dois deles ficaram-me na memória, mas mais pelo lado obscurantista da Justiça, sempre difícil de entender ou aceitar. Um deles, na terra do meu editor, na Huila, nesse tempo eu dizia Sá da Bandeira, mas ele, bem entendido, não teve nada a ver com aquilo, apesar de ter reconhecidamente mau feitio. Uma senhora, viuva, foi morta, em casa. Ao tempo a investigação criminal fora de Luanda dependia do procurador delegado do MP, creio que era assim que se dizia, a «Judite»não era para ali chamada. As averiguações não encontraram pistas e o processo de investigação ficou parado. O filho da senhora, empresário de construção civil, bem relacionado em Luanda, lastimou-se junto do governo. O governador encaminhou-o para a Judiciária. E terá telefonado para o director com um «Vê lá o que se pode fazer».
Foram mandados dois agentes à Huila. Ao cabo de três dias de investigação. Detiveram três irmãos, vizinhos da senhora e rumaram com eles a Luanda. Nessa mesma noite um deles confessou. Foi feita a reconstituição do crime, no local, e o processo seguiu para a Huila, onde o
procurador do MP entendeu não encontrar matéria suficiente para levar o réu a julgamento.
Caso semelhante haveria de ocorrer em Luanda, mas com outros contornos.
Uma das candidatas a miss Angola foi assassinada e encontrada morta na banheira de uma casa de banho, em Luanda. O administrador do Notícia, que tinha tido uma relação com a jovem foi investigado e detido. Acabou acusado e o processo seguiu para tribunal, sem confissão e sem qualquer elemento de prova. E o juiz não deduziu acusação , devolveu o processo e soltou o arguido. Na PJ o processo foi posto na gaveta e não teve mais investigação. Nos idos, o conceito de Justiça tinha preconceitos e parecia sofrer de ciumeiras. Entre nós, na actualidade já não existem decerto ciumeiras, nem preconceitos. Há gavetas... enormes!