Ando há semanas para escrever esta simples frases: reencontrei o Trabulo. Queria escrevê-la sem emoção, ou com a emoção suficiente para que toda a gente percebesse que este foi (é) um verdadeiro encontro. É que, logo a seguir, estávamos a falar como se nos tivessemos visto há apenas dez minutos.
E...todavia, os desencontros destes 44 anos foram muitos. A última vez que nos tínhamos visto foi em Fevereiro de 1962. A mãe dele tinha falecido há pouco.O curso de medicina ocupava-o por completo e havia algumas tardes que saíamos para jogar bilhar (seria?). A poesia era, nesse tempo, o seu escape. Para mim, o regresso a Angola era uma obsessão - (detestava as "miúdas com soquetes e que se ruborizavam quando se lhes pegava na mão...).
Eu regressei!!! A minha vida ganhou a dimensão africana que, mais tarde, se revelaria um verdadeiro atropelo da minha personalidade, um choque autenticamente "tecnológico" e, apesar de tudo, um confronto cultural de que saí derrotado. Apesar da inexistência de soquetes, das experiências heterodoxas, dos filhos...apesar do amor à terra , às gentes...
Os choques deram origem ao reavivar de outras raízes, de outras memórias, à descoberta da minha condição de desenraízado, vivendo numa terra com quase nove séculos de História, capaz de absorver, internamente, verdadeiras aberrações, como as estórias de violações de crianças praticadas intra-muros familiares e eleições entre pares de uma mesma farça...
Estas, todavia, não eliminavam as outras, as memórias dos tempos felizes e limpos. E sempre lá estava o Trabulo, companheiro de brincadeira de bairro, confidente de estórias verdadeiras ou inventadas na adolescência irriquieta de quem ainda não tinha o Mundo nas mãos, mas, seguramente, iria ter - sem soquetes, de preferência.
A primeira grande notícia veio com o "Mulemba - contos de África" - dois livros num apenas, mas que me revelava o Trabulo saudoso de África - não africano, mas saudoso da envolvência.
Depois foram as notícias sobre o Diário do Salazar: gente zangada, a fazer do Trabulo objecto das suas próprias frustações.
Com meestria, ele apenas fez aquilo que todos nós, da nossa geração, gostaríamos de fazer: imaginar o que era, o que pensava e o que fazia o mafarrico.
De tal forma o fez que conseguiu, nas partes que são pura ficção, imitar a linguagem do António de Santa Comba. No final, não há quem não conclua que o homem era um simples mortal, mas com ambições de poder desmedidas; e encontrou formas para as concretizar.
Não deixa de ser interessante - para mim - que, ao mesmo tempo que lia o Salazar, lia um outro livro do António Trabulo: " Histórias do Caparandanda",uma colecção de contos angolanos compilados por ele e reescritos com a sua linguagem poética. Afinal, a diferença entre os dois livros, está em que Salazar - um personagem real - provocou males reais a personagens reais e os Contos do "Caparandanda", parecendo fábulas, não deixam de ser retratos de outras sociedades em que o mal e o bem se gladiam - embora de formas diferentes e sem que o bem sempre vença.
No mesmo contexto de "estórias de outros tempos" (Caparandanda), tanto os contos angolanos, como a biografia de Salazar, não deixam de ser lições que os mais velhos transmitem aos mais novos. É o encontro possível entre gerações - numa perspectiva africana.
À maneira europeia, um escrito, um livro, um conto, uma fábula, uma crónica tem sempre uma perspectiva política, em que benfiquistas estão de um lado e sportinguistas de outro. Não há encontro possível e a lição a tirar é sempre diferente.
Independentemente dos livros e do gozo que a sua leitura me deu, venho aqui, de um modo demasiado emocionado, talvez, dizer que este reencontro foi - tenho de o confessar - uma das grandes alegrias desta minha condição de desenraízado, que, de vez em quando, lá encontra um pouco da sua própria terra para pensar na justeza dos desígnios dos deuses.
O Trabulo está a escrever muito. Acho que, finalmente, para além da sapiência com que exerce a sua profissão de neurocirgião no Hospital dos Capuchos, encontrou tempos para a sua "vocação": a escrita. Entregou-me um texto-rascunho sobre o "Cunene", o nosso fascínio de adolescentes. Um rio que ele viu uma única vez, durante uma excursão de liceu.
Mais tarde, em circunstâncias bem diferentes, tive a oportunidade de conviver o dia-a-dia- com o Cunene, a primeira maravilha do Mundo. É outro encontro.Ele não precisou do dia-a-dia para sentir o Rio Cunene como eu ainda hoje o recordo.
Estamos Juntos - diriam dois amigos Quiocos.
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