Estar na aldeia e não ver as casas aconteceu-me algumas vezes. Tapar o Sol com a peneira só funciona com quem estiver, no mínimo, ensonado. Hoje sei que andei muitas vezes a «dormir na forma».
Quando, com o Quim Cabral, fui à Guiné, Salazar já tinha tombado da cadeira e, por isso, encontrei em Bissau o prof. Caetano, Marcelo de seu nome, que estava de partida para Luanda .
Cheguei ali imbuido da «minha importância» porque o Comando Militar em Luanda não só acedera a dar-nos boleia em avião militar, como desviara o aparelho da rota pelo Sal para nos depositar direitinhos na capital guineense.
Quem não esteve presente durante a visita do Presidente do Conselho (lembram-se? Era assim que se chamava ao primeiro-ministro!) foi o coronel (ou coisa assim) responsável pela Força Aérea na província. O coronel tinha ido a Cabo Verde, alegadamente para recolher a equipa de reportagem do Notícia, que se deslocava à Guiné! O «desencontro» foi glosado à mesa, ao jantar na esplanada do restaurante. Podia ser distraíradodo e não ver casas, mas as cascas das ostras, aos montes, espalhadas pelo chão da rua dos bares, cafés ou restaurantes tinham-me desvairado.
Parecia-me pelo menos tão bom como cuspir caroços de ginja para a rua, nas Portas de Santo Antão.
Na manhã seguinte Spínola ia sair. O coronel interferiu e o governador acedia a levar um de nós. Teria o fotógrafo de ir só, mas o helio voltou a poisar, desceu um elemento da segurança e
juntei-me ao Quim. O general queria conversa e evidência. Um par de «terroristas» tinha sido capturado por um grupo militar que fazia uma operação de rotina. E era nisso que consistia a deslocação do general, pensei eu. O duo ia carregado de material escolar: pequenos livros e cadernos destinados ao ensino a garotos, e era constituído por um homem, com as mãos amarradas atrás das costas e uma mulher. O guerrilheiro estava visivelmente asustado, mas a dama infundia respeito pelo porte. Olhou-nos com fria indiferença e nem respondeu aos bons dias! Spínola olhou o material escolar, folheando os manuais também com indiferença e ninguém se ralou quando eu escolhi três ou quatro exemplares e os guardei. Eram giros e feitos com gosto.
Dali o general rumou para um amplo quartel, bem no meio do mato e quase silencioso. Spínola falou com o comandante e com um ou outro dos oficiais. Nada de muito cerimonioso. Depois um almoço razoavelmente frugal.
Só percebi porque se dera Spínola ao incómodo de nos levar ali, quando o «nosso» coronel me revelou que o contingente militar aquartelado estava todo de castigo há mais de um mês, à espera de regressar a casa, na «metrópole», por ter terminado a comissão. O incidente que gerou o castigo teve a ver com uma falha de vigilância, que terá posto em causa a segurança de quartel.
Levei também o meu tempo a perceber os porquês da relação cordial com o coronel aviador, que voltei a encontrar, em Nampula, uns anitos depois, quando visitei Moçambique para recolher material para um caderno especial sobre a «província». Um "breefing" alucinante sobre a situação militar. Aterrador. A guerra estava praticamente perdida. «Aquilo» não fazia sentido, sobretudo dito por militares a jornalistas, numa sala reservada.
Dei-me ao cuidado de convidar o coronel para almoçar e confrontei-o. Ele não reagiu, não comentou nem respondeu. Limitou-se a vago aceno de impotência e mudou de assunto, passando a contar-me uma graçola: os jovens oficiais tinham convencido o comandante a ir a Lisboa candidatar-se à presidência, que toda a gente e todos os militares estavam a contar com ele. O sujeito veio mesmo a Lisboa e foi alvo de chacota.
Senti-me baralhado e fui com o Baião para a Ilha de Moçambique, regalar a vista e aconchegar o estômago. O que aquilo era bonito e tranquilo! Com militares de lá, que fui sondando, nada de preocupante parecia estar a acontecer. Nada que se comparasse com Angola; ali o clima era de guerra e havia confrontos, com baixas dos dois lados, mas sem impacte nas populações urbanas.
Alguns meses depois o «meu» coronel era um dos nomes sonantes do Conselho da Revolução.
Chegou atrasado à fotografia, porque no 25 ainda estava em Moçambique, mas o lugar era já dele. Eu tinha tido os sinais. Estive na aldeia e não soube ver as casas. Creio que o coronel, ele também, acabou por se perder na aldeia,tal como outro galvanizado general, outro dos que deu barraca...
Que a coisa vinha de trás parece agora não haver dúvidas. Não terá sido por acaso que a PIDE baixou para DGS e ficou tranquilamente a ver passar os comboios. Sem esquecer que Marcelo
«deixou» Tomás ir à Televisão mostrar-se e ser mostrado, como já o fizera antes ao augusto António, o da Estrela...
Haveria provavelmente duas paralelas. De qual delas seria a coluna que saiu das Caldas e não chegou à calçada do Carriche? E qual delas pensou Marcelo que chegou ao Terreiro do Paço?
Eu dormia tranquilamente em Luanda e já confessei que não vi as casas. Foi um amigo que me telefonou de Joanesburgo quem me alertou. O governador também deve ter sido surpreendido ao descobrir que estava na paralela errada. Também tinha tido um sinal: tinha detectado algo
confusionista no chefe das FA de Angola e pedira ao irmão, militar, que governava o Quanza Sul, que apurasse qualquer coisa. O futuro candidato da AD a Belém tranquilizou o mano do governador. Convirá, talvez, sublinhar que, num desses entretantos, Costa Gomes esteve em Luanda, em plena vigência da brigada do reumático e pode ter confundido o antigo director
de um campo de prisioneiros políticos, no sul de Angola, atraindo-o para uma das paralelas.
São muitas coincidências.
A aldeia sempre lá esteve. Onde diabo se escondiam as casas? Por experiência própria posso assegurar que o pior cego não é afinal o que não quer ver, mas o que não sabe ver. Se isto é admitir que sou burro, que posso fazer...
Quando, com o Quim Cabral, fui à Guiné, Salazar já tinha tombado da cadeira e, por isso, encontrei em Bissau o prof. Caetano, Marcelo de seu nome, que estava de partida para Luanda .
Cheguei ali imbuido da «minha importância» porque o Comando Militar em Luanda não só acedera a dar-nos boleia em avião militar, como desviara o aparelho da rota pelo Sal para nos depositar direitinhos na capital guineense.
Quem não esteve presente durante a visita do Presidente do Conselho (lembram-se? Era assim que se chamava ao primeiro-ministro!) foi o coronel (ou coisa assim) responsável pela Força Aérea na província. O coronel tinha ido a Cabo Verde, alegadamente para recolher a equipa de reportagem do Notícia, que se deslocava à Guiné! O «desencontro» foi glosado à mesa, ao jantar na esplanada do restaurante. Podia ser distraíradodo e não ver casas, mas as cascas das ostras, aos montes, espalhadas pelo chão da rua dos bares, cafés ou restaurantes tinham-me desvairado.
Parecia-me pelo menos tão bom como cuspir caroços de ginja para a rua, nas Portas de Santo Antão.
Na manhã seguinte Spínola ia sair. O coronel interferiu e o governador acedia a levar um de nós. Teria o fotógrafo de ir só, mas o helio voltou a poisar, desceu um elemento da segurança e
juntei-me ao Quim. O general queria conversa e evidência. Um par de «terroristas» tinha sido capturado por um grupo militar que fazia uma operação de rotina. E era nisso que consistia a deslocação do general, pensei eu. O duo ia carregado de material escolar: pequenos livros e cadernos destinados ao ensino a garotos, e era constituído por um homem, com as mãos amarradas atrás das costas e uma mulher. O guerrilheiro estava visivelmente asustado, mas a dama infundia respeito pelo porte. Olhou-nos com fria indiferença e nem respondeu aos bons dias! Spínola olhou o material escolar, folheando os manuais também com indiferença e ninguém se ralou quando eu escolhi três ou quatro exemplares e os guardei. Eram giros e feitos com gosto.
Dali o general rumou para um amplo quartel, bem no meio do mato e quase silencioso. Spínola falou com o comandante e com um ou outro dos oficiais. Nada de muito cerimonioso. Depois um almoço razoavelmente frugal.
Só percebi porque se dera Spínola ao incómodo de nos levar ali, quando o «nosso» coronel me revelou que o contingente militar aquartelado estava todo de castigo há mais de um mês, à espera de regressar a casa, na «metrópole», por ter terminado a comissão. O incidente que gerou o castigo teve a ver com uma falha de vigilância, que terá posto em causa a segurança de quartel.
Levei também o meu tempo a perceber os porquês da relação cordial com o coronel aviador, que voltei a encontrar, em Nampula, uns anitos depois, quando visitei Moçambique para recolher material para um caderno especial sobre a «província». Um "breefing" alucinante sobre a situação militar. Aterrador. A guerra estava praticamente perdida. «Aquilo» não fazia sentido, sobretudo dito por militares a jornalistas, numa sala reservada.
Dei-me ao cuidado de convidar o coronel para almoçar e confrontei-o. Ele não reagiu, não comentou nem respondeu. Limitou-se a vago aceno de impotência e mudou de assunto, passando a contar-me uma graçola: os jovens oficiais tinham convencido o comandante a ir a Lisboa candidatar-se à presidência, que toda a gente e todos os militares estavam a contar com ele. O sujeito veio mesmo a Lisboa e foi alvo de chacota.
Senti-me baralhado e fui com o Baião para a Ilha de Moçambique, regalar a vista e aconchegar o estômago. O que aquilo era bonito e tranquilo! Com militares de lá, que fui sondando, nada de preocupante parecia estar a acontecer. Nada que se comparasse com Angola; ali o clima era de guerra e havia confrontos, com baixas dos dois lados, mas sem impacte nas populações urbanas.
Alguns meses depois o «meu» coronel era um dos nomes sonantes do Conselho da Revolução.
Chegou atrasado à fotografia, porque no 25 ainda estava em Moçambique, mas o lugar era já dele. Eu tinha tido os sinais. Estive na aldeia e não soube ver as casas. Creio que o coronel, ele também, acabou por se perder na aldeia,tal como outro galvanizado general, outro dos que deu barraca...
Que a coisa vinha de trás parece agora não haver dúvidas. Não terá sido por acaso que a PIDE baixou para DGS e ficou tranquilamente a ver passar os comboios. Sem esquecer que Marcelo
«deixou» Tomás ir à Televisão mostrar-se e ser mostrado, como já o fizera antes ao augusto António, o da Estrela...
Haveria provavelmente duas paralelas. De qual delas seria a coluna que saiu das Caldas e não chegou à calçada do Carriche? E qual delas pensou Marcelo que chegou ao Terreiro do Paço?
Eu dormia tranquilamente em Luanda e já confessei que não vi as casas. Foi um amigo que me telefonou de Joanesburgo quem me alertou. O governador também deve ter sido surpreendido ao descobrir que estava na paralela errada. Também tinha tido um sinal: tinha detectado algo
confusionista no chefe das FA de Angola e pedira ao irmão, militar, que governava o Quanza Sul, que apurasse qualquer coisa. O futuro candidato da AD a Belém tranquilizou o mano do governador. Convirá, talvez, sublinhar que, num desses entretantos, Costa Gomes esteve em Luanda, em plena vigência da brigada do reumático e pode ter confundido o antigo director
de um campo de prisioneiros políticos, no sul de Angola, atraindo-o para uma das paralelas.
São muitas coincidências.
A aldeia sempre lá esteve. Onde diabo se escondiam as casas? Por experiência própria posso assegurar que o pior cego não é afinal o que não quer ver, mas o que não sabe ver. Se isto é admitir que sou burro, que posso fazer...
1 comentário:
Estimado António Gonçalves,
Tenho lido com desusado interesse os relatos da sua experiência como jornalista em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau alusivos ao período colonial. São testemunhos de uma importância capital, contudo permita-me sugerir-lhe que seja mais objectivo e directo na referência a pessoas e situações de modo a poupar o leitor a circunlóquios que, por vezes, se repetem e apoucam a riqueza descritiva do texto. Ou seja, brinde-nos com um discurso menos opaco, não susceptível de adivinhações.
Talvez seja o meu lado de historiador que, ansioso de colher mais informações nas suas narrativas, me leva a fazer-lhe este alvitre.
Em todo o caso felicito-o.
Conto com a sua benevolência.
Carlos Pacheco
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