sexta-feira, abril 02, 2010

O Povo da Guiné Bissau


Estive por duas vezes na Guiné Bissau, uma como professor, tendo-me calhado em sorte, porque fui dos últimos a chegar, a tarefa de ensinar português e à noite, aos alunos que tentavam completar cursos. Acabou por ser gratiticante, apesar de alguns problemas , uns relacionados com o alojamento, outros com o próprio funcionamento do Liceu Kwame N'Krumah, cujo reitor era o Manecas, um bem intenciondo, sacrificado, um verdadeiro patriota, que largou o seu próprio curso para ir, a correr, ajudar o seu país nas ingentes tarefas da Independência, mas a quem, evidentemente, faltavam recursos.

Lembro-me de ter uma turma com sessenta alunos, a quem eu dizia: "isto não é uma sala de aulas, é uma sala de espectáculos, só faltam as luzes...", porque, em cima dos sessenta ainda aparecia sempre uma dúzia de assistentes. Gostavam das minhas aulas, o que me lisonjeia, mas não pode fazer com que, analisando a situação, perceba que aquela era uma das dificuldades intransponíveis.

A massificação da Escola traz sempre problemas e na Guiné Bissau, muito mais, já que os dirigentes, os que se apresentavam com o "direito" e não o dever à governação, eram pouco escolarizados e cometiam erros tremendos para plateias de alunos já com alguma preparação.

Lembro-me, por exmeplo, que o Paulo Correia, mandado matar pelo Nino Vieira, foi a uma reunião com estudantes do 6º e 7ºanos da alura para lhes explicar que eles, alunos, tinham a sorte de ter uma Escola que os estava a ensinar porque ele e outros tiveram que abandonar o objectivo da sua preparação pessoal para se dedicarem à tarefa bem mais difícil de lutar pela independência da sua Terra, a Independência, que lhes permitia ter aquela escola, cheia de problemas - é certo - mas uma Escola para Guineenses. Foi aí que Paulo Correia pela adesão com que foi recebido pela Juventude, no fundo, decretou o seu próprio fim. Nino Não perdoava.

Uma outra das minhas dificuldades esteve relacionada com o regresso, já que a vice-reitora, em substituição do Manecas, acrescentou umas regas estapafúrdias às condições de termo dos nossos contratos, porque no baile dos finalistas, um tal Luís Vaz, professor cooperante português foi fazer um discurso que raiava o spinolismo.

Conclusão, fomos todos metidos no mesmo saco, o Buscardini, chefe da segurança, queria que eu fosse lá à polícia buscar o meu passaporte, que, de resto, já tinha sido objecto de chantagem por parte de um aluno que, em pleno exame, de prova escrita, me ameaçou não me entregar o dito se a nota não lhe conviesse...

Nessa altura disse ao embaixador de Portugal em Bissau,Pinto da França, que o "problema " era dele e eu queria o meu passaporte. Consegui regressar a Portugal a 5 de Agosto de 1978. O Luís Vaz ficou por lá mais uns meses...

Analisando a minha actuação como professor naquela ano lectivo longíncuo de 1877/78, acho que cumpri o meu papel. Lembro-me, igualmente, de ter ficado com uma excelente impressão do Povo da Guiné Bissau, desde que fora de Bissau. Na capital andava toda a agente a ver se resolvia um problema, se conseguia um emprego, se obtinha uma promoção, se, finalmente, era nomeado chefe.

Nesse tempo fiz várias viagens, a que mais me impressionou foi a que me levou até ao Norte, na fronteira com o Senegal, na antiga estância de turismo das elites coloniais, Varela, onde ainda havia vestígios de água canalizada, quente e fria, nas habitações espalhadas por um perímetro simpático junto à praia.

Eu, O Zé Nascimento e a Clara Campino divertim-nos com os nossos "hospedeiros", os flupes, islamizados e bons anfitriões.

Antes passámos uma noite em Susana, uma missão católica, dirigida por padres italianos e que, durante toda a noite conversaram connosco e nos explicaram tudo acerca daquela região e da História antiga e mais recente da Guiné Bisssau. Foi nessa noite que eu fiquei a conhecer aquele país e aquele povo.

De Susana para Varela fomos a pé, por caminhos de areia difíceis e penosos de fazer. A Clara, com os seus trinta quilos, lá aguentou a caminhada.

Acho que ela, tal como eu e o Zé, nos lembrávamos da viagem de canoa de Canchungo para S. Domingos em que vimos as piores condições de transporte possíveis de ver no nosso (dos três) universo. Recordo uma mãe, que, para proteger a filha, viajou durante algumas horas numa canoa feita de tronco de árvore, com as pernas colocadas em tal posição que nos parecia que se tocavam, algures por detrás da cabeça, deixando a resguardo um buraco suficientemente espaçoso para caber a sua filhinha de alguns três anos. Isto, no meio de uma multidão que prometia um afundanço da canoa a todo o momento.

Em S. Domingos confraternizámos com o povo da vila que, não sei por que razão, resolveu fazer um batuque durante toda a noite, até às 9 da manhã; um batuque com um som que ainda hoje permanece na minha memória, feito do ruído de palmas de mãos, com um ritmo irrestível.

De S. Domingos alguém nos deu uma boleia para Susana. Depois o luxo acabou. Bem como no regresso.

Desta e doutras viagens ficou-me a memória de um Povo, que naquele tempo tinha muita esperança no futuro. Acreditava sinceramente que a Independência lhe traria grandes benefícios.

Voltei em 1981. Em Fevereiro, como correspondente da ANOP, para substituir o Xavier de Figueiredo, que assitiu ao golpe de estado de 14 de Novembro de 1980. Um verdadeiro auto-golpe, já que o Nino Vieira, apresentado como cabecilha da rebelião, era, na altura, primeiro-ministro, isto é, "Primeiro Comissário" do Governo da República da Guiné Bissau, sendo Luís Cabral, irmão de Amílcar, o Presidente do Conselho de Estado, isto é, Presidente da República.

Em Março - 20 - fui expulso pelo Conselho da Revolução, mas o que presenciei durante estes pouco mais de 40 dias deu para perceber que os caminhos da Guiné Bissau não eram fáceis. Nino, além de dormir com as mulheres dos ministros, viajava e não fazia nada. Vendia as idas à Taywan por um milhão de dólares, depositados na Suiça.

O Povo, o tal povo cheio de esperanças, não existia na sua cabeça, nem na de nenhum dos líderes que com ele existiram, que o substituiram, que ele mandou matar, que mataram a outros. A geração da "guerra de Libertação" é uma geração maldita e, quando ela tiver terminado o país não tem Estado, o Estado não tem país e o Povo tem que ir encontrar outra solução. Por isso, há mais de vinte anos, escrevi: "A Guiné Bissau, como Estado Independente é um PUF histórico".

1 comentário:

Anónimo disse...

Encontrei casualmente este local.Tenho lido um pouco dos textos do Leston Bandeira, pessoa que conheci no Lubango, bem como o Fernando Alves. Sinceramente que houve dois Lestons, um antes do 25 de Abril e outro após e deste sinceramente não deixa saudades nenhumas. O Leston Bandeira de agora,acordou tardiamente para uma realidade que não viu a tempo, o que lamento.Resta o grande amor a Angola e particularmente ao Lubango, disso não tenho eu dúvidas nenhumas.De qualquer modo é bom saber que o Leston existe e continua a ter a sua paixão por África,nisso nada mudou!!