Aqui já há uns meses contei neste blogue uma das muitas e velhas estórias luandenses de outros tempos. Nela falava de um desastre de automóvel e de um colega de profissão, o Acácio Barradas, que, entretanto, não conseguiu perceber que, para intervir no dito texto e rectificar o que havia para rectificar, lhe bastava elaborar um comentário. Este é um blogue que os permite.
O Acácio tentou contactar com os autores do dito blogue, mas só agora me chegou o respectivo texto, que, com todo o gosto aqui reproduzo, abrindo-lhe a primeira página do Africandar.
Como o Acácio Barradas facilmente compreenderá, apenas lhe retiro o nome a quem o texto foi dirigido e a quem, seguramente, não chegou, porque, de outro modo teria feito o que agora vou fazer.
Não costumo ler blogues. Não tenho nada contra, mas o excesso desmotiva. E como, para encontrar uma pérola, o trabalho é imenso, acabo por lhes passar ao lado. Mas não há regra sem excepção e, assim, eis-me a escrever-te por causa de um blogue de que és colaborador.
Dá-se o caso de me terem chamado a atenção para o referido blogue, de seu nome «Africandar», por nele eu ser referido num post de António Gonçalves. O post já é de Novembro de 2005, mas só agora o li. E diz o seguinte:
«O Acácio Barradas estava internado e com alguma gravidade. O carro tinha caído à baía, vindo da Ilha. Uma senhora também estava internada, mas alguém tinha tirado a folha, do maço das ocorrências. Já tinha alguns conhecimentos no “Maria Pia” e soube o nome, que nada me dizia, mas tinha notícia. E à saída, um tipo emproado chamou-me e disse: “Nada de notícia. Isto não é para publicar”. Disse-lhe que tinha pena, mas não era a mim que ele se devia dirigir.
«Quando cheguei à Redacção, e entretanto tinha recolhido mais informação e sabia que a internada era uma conhecida poetisa local e a causa, além de algum álcool, do acidente, o chefão foi-me dizendo: “Já sabemos. Não percas tempo. Não vamos dar a notícia. O Charula telefonou. Não vamos entalar um colega”. Barafustei e disse-lhe que eles nos iam lixar e dar a notícia. O Araújo não quis acreditar. Explicou-me que o Charula era uma referência e que trabalhou naquele jornal e que era amigo de todos e nós não o íamos deixar mal. E eu teimei: “Olá se vai. Espere-lhe pela pancada”.
«O Notícia fez reportagem com o caso e carregou nas tintas, com nomes e fotos. Charula de Azevedo era bom jornalista e não perderia uma oportunidade daquelas. Ao Araújo deve-lhe ter custado, mas pediu desculpa e no fim do mês vi o salário aumentado.»
Depois de ter lido isto, procurei no referido blogue algum mecanismo que me permitisse comentar directamente o escrito. Mas não encontrei nada que o autorizasse, o que a meu ver é um pouco estranho, pois costuma ser regra dos blogues que se prezam aceitar o direito de resposta. Eis porque, em recurso, me dirijo a ti, solicitando que intermediarizes junto do blogue e do autor do texto, António Gonçalves, o meu comentário, que aliás é simples:
O António Gonçalves, com a idade e a natural perda de memória, devia ter algum cuidado na rememoração de factos. Volta não volta (como ele próprio já admitiu no respeitante à gravação pirata de Aznavour por Paulo Cardoso), troca datas e personagens e contribui para lançar uma confusão desnecessária na pequena história luandense. O caso por ele relatado, de um acidente de automóvel que caíu na baía de Luanda, está longe de me ter como protagonista. Pelo contrário, fui eu o primeiro jornalista a dar pela ocorrência, que se verificou de madrugada. E como eu era noctívago e a ilha era um dos meus passeios frequentes, rumo ao Tamar e a outras casas de diversão nocturna, deparei com o acontecimento e chamei de imediato ao local o repórter fotográfico Raul Moreira, que fez a imagem dos «náufragos» e do carro a ser pescado na ponte que liga a ilha à cidade. Como é óbvio, publiquei a notícia, devidamente acompanhada da imagem do carro sinistrado, embora sem as fotografias dos «náufragos». De facto, viajava no carro uma poetisa, que por acaso era também sócia-gerente de uma grande empresa de Luanda. E como essa empresa dava publicidade aos órgãos de informação, houve pressões para abafar a notícia, visto que não era conveniente saber-se que a dita poetisa andava de noite na boémia com amigos e amigas que não sabiam controlar os copos, ao ponto de saltarem para as águas da baía em plena madrugada dentro de um automóvel. Não foi, portanto, o Charulla que andou a pedir a quem quer que fosse para não se dar a notícia. Aliás, o Charulla, que a par de ser jornalista controlava uma agência de publicidade, tinha o grande mérito de não favorecer a agência à custa da informação. O jornalista, nele, era mais forte que o homem de negócios, por isso ficou imperturbável com a notícia que fiz da ocorrência. Creio até, se a memória não me atraiçoa (como infelizmente acontece ao António Gonçalves) que lhe aplicou uns pòzinhos de ironia, em que aliás era perito.
Mas então, como é que o António Gonçalves me terá envolvido nesta peripécia? Sonhou, apenas? Não, não sonhou. Simplesmente confundiu dois casos distintos e, sob a influência do surrealismo a que foi atreito em Lisboa no Café Gelo, acabou por fazer inconscientemente um «cadáver esquisito».
Realmente, nos primórdios dos anos 60, eu tive um violento desastre na estrada de Catete e fui parar em coma ao hospital, aí sendo submetido a melindrosa intervenção cirúrgica que durou cinco horas. Só acordei passados dois dias, de braço ao peito e perna suspensa. Na altura, eu era chefe de redacção da revista Notícia e tinha-me deslocado, ao volante do meu carocha, a um posto militar localizado nos arredores de Luanda, a fim de me avistar com o «nosso alferes» Xico Orta, a cuja habilidade para o desenho recorria com frequência para ilustrar determinados textos da revista. Já no regresso a Luanda, em plena estrada de Catete, o lusco-fusco do sol posto e os faróis acesos de um camião que viajava em sentido contrário, geraram um cone de sombra no qual mergulhei sem me aperceber que havia um camião estacionado na berma, sem luzes nem triângulo luminoso que me alertassem. O embate foi brutal, tendo o meu carro saltado para a via da esquerda e carambolado no camião que vinha em sentido contrário e que também capotou. Não morri porque não calhou e, vendo o estado em que o carocha ficou, reduzido a sucata, quase seria tentado a pensar num milagre, não fosse estar certo de que nenhum santo ou santa usaria os poderes que eventualmente tivesse em minha defesa.
Tudo isto não teria especial relevância, não se desse o caso de incluir um pormenor algo picante: é que comigo seguia uma senhora da chamada «melhor sociedade local», que tinha a particularidade de não ser a minha «extremosa esposa». Tratava-se, isso sim, da (recentemente falecida) pintora Teresa Gama, então considerada a ovelha ranhosa da família Neves e Sousa, tal como eu era considerado a ovelha ranhosa da família da minha mulher, cujo apelido Pereira do Nascimento evoca desde logo o meu sogro, que era então uma figura de grande gabarito e larga influência. Daí que, por interferência de ambas as famílias, Neves e Sousa e Pereira do Nascimento, tenham sido movidas influências no sentido de abafar a notícia do acidente. Tais influências foram tais e tantas que, mesmo no Hospital Maria Pia, onde eu e a Teresa Gama estávamos internados, havia ordens terminantes para nenhum saber do outro por intermédio dos médicos, das enfermeiras e até dos serventes. A situação era de tal forma aberrante, que tive de recorrer aos préstimos da minha «extremosa esposa». Foi ela, a presumível ofendida pelo suspeito adúltero que eu era, que a meu pedido se prontificou a procurar o quarto onde a Teresa Gama estava internada, certificando-se do seu estado e trazendo-me as informações que ninguém me dava. Isso não significa que tivesse aceite a minha «infidelidade», pois logo que tive alta apercebi-me de que a minha casa passara a ter um único inquilino: eu. Mulher e filhos tinham voado para longe.
Se o Charulla teve ou não teve qualquer interferência nas maquinações para esconder a notícia, ignoro. Mas tudo me leva a crer que o tenha feito, embora de facto não se coibisse de dar a imagem do acidente na revista Notícia, mas sem referir o nome da senhora acompanhante. Tal omissão não a fez certamente por boas razões, mas por ter um ciúme diabólico da Teresa Gama, que ele não compreendia como era capaz de resistir aos seus encantos, preferindo um tipo como eu. Em resultado desta patologia, acabei por ser despedido da revista, sem apelo nem agravo. O administrador da publicação, António Alves Simões, mancomunado com o Charulla, chamou-me para me despedir, invocando a interferência da PIDE nesse sentido. É claro que PIDE não passou de um falso pretexto alinhavado à pressa para substituir a verdadeira razão: «dor de corno». Na sequência deste despedimento – e como era preciso dar alguma justificação do mesmo aos leitores da revista –, foi publicada uma notícia em que se invocavam, sem os especificar, «factos graves». Dirigi-me à revista para exigir explicações sobre esta notícia e o Charulla recebeu-me aos gritos e empurrou-me pela escada abaixo, o que na altura era para mim algo complicado, pois tinha um braço em gesso e um joelho entrapado.
Como é natural, a invocação de «factos graves» para o meu despedimento levou muita gente a querer saber o que de realmente grave eu fizera, pois o mais plausível, na versão corrente, era eu ter assaltado o cofre da empresa, o que eventualmente justificaria a minha vida nocturna e o meu êxito aparente junto das mulheres. Houve, felizmente, um jornalista que não se deixou enredar pelo diz-se-diz-se e, depois de investigar as verdadeiras causas, escreveu e publicou na revista Semana Ilustrada, dirigida por Alfredo Diogo Júnior, uma bem humorada crónica em que, perante o enigma dos «factos graves» que me eram atribuídos, encontrou a solução recorrendo a uma velha expressão francesa: «cherchez la femme». O jornalista que se arvorou em Poirot para chegar a esta sábia conclusão, pondo meia Luanda a rir, foi nem mais nem menos do que o famoso Ernesto Lara Filho.
A história vai longa, mas para ser devidamente entendida achei que não devia poupar pormenores. Resta-me acrescentar que, depois de todas estas bizarrias, o Charulla tornou-se proprietário da revista Notícia e, abafados os velhos ressentimentos, resolveu convidar-me a voltar ao «local do crime». E assim aconteceu, ao que parece com o agrado do António Gonçalves, que a propósito do ambiente que eu instituí na redacção, já me prestou justiça ao escrever no mesmo blogue:
«No “Notícia”, depois, encontrei a grande alegria de viver e um companheirismo exemplar de Acácio Barradas, então Chefe de Redacção, e de Joaquim Cabral, um grande fotógrafo e um bom amigo. Angola viria a seguir. Sem o «N» não teria andado tanto em tão pouco tempo...»
Enfim, não há nada como um «happy end», à boa maneira dos velhos tempos de Holywood.
Acácio Barradas.