Fez ontem vinte anos que morreu Zeca Afonso, uma referência de luta contra a opressão o obscurantismo, mesmo para aqueles que nunca lutaram por coisa nenhuma - o que é bom. Alguém disse que as nações não se constroem sem heróis. Entre os portugueses do sec. XX eles foram poucos, mas, seguramente, o Zeca um deles.
E foi-o durante muitos anos e em muitos lugares. Os seus discos, proibidos de passar nas Rádios, alimentavam os sonhos de muita gente de um dia viver na mesma terra mas com outra gente a mandar.
Quando falo em muitos lugares, não posso deixar de me lembrar da afirmação de um homem da Rádio e Televisão, que num programa em que se falava da Rádio de Angola, transmitido há pouco tempo pela RTP África, o Latitudes, afirmava que em Angola, quem trabalhava na Rádio não conhecia, sequer, o Zeca Afonso.
Hoje, que estou com tempo, vou contar uma estória sobre essa ideia de que em Angola eram todos uns ignorantes sobre as movimentações culturais e políticas portuguesas. Assim, o Carlos Brandão Lucas, meu amigo e com formação de historiador, poderá ficar orgulhoso pelo facto de no Lubango - não em Luanda, onde não havia tempo para certas coisas - haver um grande interesse pelo Zeca Afonso e também um grande conhecimento da sua música e o que ela representava.
No final dos anos 60, suponho que mesmo em 1969, o Rádio Clube da Huíla, onde eu trabalhava, convidou o Zeca Afonso para fazer um espectáculo no Lubango (Sá da Bandeira). Escrevemos-lhe para Setúbal, donde ele nos respondeu aceitando o convite, dando-nos algumas facilidades e pondo algumas condições.
Como pagamento apenas queria as viagens e a estadia - e mesmo assim utilizaria uma passagem que tinha para Moçambique, faria uma paragem em Luanda e de lá voaria para o Lubango.
As suas condições eram: aceitava fazer um espectáculo pago, desde que a preços baixos e queria fazer um outro espectáculo, "para o povo", sem qualquer pagamento.
O Leonel Cosme, que também trabalhava no Rádio Clube da Huíla, embora com funções administrativas, eu, o Humberto Ricardo, o Pereira Monteiro, a Eunice Correia e, de uma forma geral, todos nos empenhámos neste evento. E connosco, a cidade inteira.
O espectáculo gratuito "para o povo" seria feito numa plataforma, a sair da chamada esplanada capela da Senhora do Monte, com colunas de som, espalhadas pela serra em torno do então parque da Senhora do Monte. As pesssoas tinham um espaço muito razoável para ver o Zeca Afonso, como que a sair da Serra e ouvi-lo de uma forma totalmente inédita.
Houve bastante correspondência trocada com ele e o Zeca Afonso ficou verdadeiramente entusiasmado com a ideia do espectáculo na Serra.
Enviou-nos a listagem das canções que iria cantar. Foram todas à censura local e aprovadas. Promovemos os espectáculos.
O espectáculo com público pagante seria realizado no Pavilhão Gimnodesportivo e os bilhetes esgotaram-se em dois ou três dias.
Estava tudo preparado para receber em festa o Zeca Afonso, quando recebemos comunicação, directamente do Governo Geral ( o governador era o Coronel Rebocho Vaz) a proibir o espectáculo.
Tivémos, como é óbvio, de devolver o dinheiro às pessoas e fomos impedidos de explicar as razões por que não haveria espectáculo, mas o povo era sereno mas não estúpido e percebeu que o São José Lopes, o homem da PIDE em Angola, não tinha gostado da ideia.
Penso que esta história não faz sequer parte das várias biografias do Zeca Afonso, mas ela revela o seu grande empenhamento em fazer da canção "uma arma" e a sua grande generosidade, dispondo do seu tempo, a troco, praticamente, de nada.
Por último, também deixo aqui a ideia de que o Zeca não era uma desconhecido em Angola - sê-lo-ia em Luanda ?
Eu, por exemplo, trazia no meu automóvel um gravador portátil que só tocava música do Zeca Afonso. Já que não a podia passar na rádio...
2 comentários:
Prezado Leston Bandeira, é claro que o Zeca Afonso não era um "ilustre desconhecido" em Luanda. Não sei se Brandão Lucas terá alguma vez tocado alguma canção do Zeca num dos seus programas; talvez não, e não por culpa de Brandão Lucas. Mas na própria Emissora Oficial de Angola (!), em especial no programa Fórmula J, que era transmitido ao fim da tarde, António Macedo (que apresenta agora o Programa da Manhã da Antena 1) passou muitas vezes canções do Zeca, tais como Maria Faia, Venham Mais Cinco, Maio Maduro Maio, etc. Em contraste, aqui na dita Metrópole, até o próprio nome do Zeca era proibido na Emissora Nacional, quanto mais canções dele!
Nem o Zeca, nem os restantes cantores de intervenção de outrora o eram! É como agora, tal & qual!, quem se limita a ouvir o que a rádio passa....'tá tramado!Dou-vos um pequeno expº., há tempos ouviram-se uns rumores de que Pedro Barroso -- uma das vozes mais bonitas deste país -- estaria mt doente -- à morte...
Pois nesse dia, passaram o Pedro Barroso pelas Rádios todas!!!!!
Está mais que visto: neste país, tem de se estar à morte ou morto mesmo, para se ser ouvido! Acho que com isto digo tudo...
Ah, só queria acrescentar que, uma das canções que me ficou gravada na memória, cantada pelo Zeca, já nos anos finais foi: "O Comboio Descendente" com ritmo africano!!!!! SUPER!
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