domingo, junho 24, 2007

Guiné Bissau - um PUF histórico

Fui professor na Guiné Bissau, nos idos de 70. Voltei a Bissau depois do golpe de 14 de Novembro de 1980 como correspondente da ANOP, condição que mentive durante 4o dias, findos os quais fui expulso. Deram-me um prazo de 20 horas para sair.

Foi sobretudo na primeira circunstância que melhor conheci o país, ainda sob a presidência de Luís Cabral. Havia um Estado organizado - tão bem quanto o poderia ser - com alguns sectores a funcionar razoavelmente e podia descobrir-se uma estratégia de desenvolvimento, embora alguns erros cometidos não tenham uma explicação plausível.

O golpe de 14 de Novembro de 1980 foi sobretudo contra os caboverdianos. O homem que apareceu a liderá-lo - Nino Vieira - era o primeiro-ministro do governo de Luís Cabral. Um primeiro-ministro que nasceu da necessidade de estabelecer equilíbrios entre guineenses e caboverdianos e nada mais. Nino era, praticamente, analfabeto e a sua ocupação preferida eram as mulheres. Muitas das suas namoradas de circunstância vinham a Lisboa para comprar vestidos e outras coisas . Quem pagava era Nino, isto é, o governo, isto é a cooperação internacional.
Para perceber esta afirmação é necessário saber que a Guiné Bissau foi o país que recebeu da parte da comunidade internacional a maior ajuda que foi prestada a um país depois da independência.
Com o golpe, Nino, elevado à condição de presidente, começou a sentir-se ameaçado de todos os lados e à sua ocupação preferida juntou outra; eliminar os seus possíveis adversários. O país acentuou as deficiências, o Estado passou a ser um amontoado de amigos, sem competência ou de homens que, pressionados, tinham que aceitar lugares de ministérios mais difíceis.
As coisas foram piorando e Bissau transformou-se numa cidade-estado sem lei, onde o principal objectivo era sobreviver.
Com Nino, a Guiné Bissau trasnformou-se num dos mais pobres países do Mundo, sem que para isso haja razões naturais. O descontentamento cresceu e estendeu-se ao sector onde o grande guerrilheio da guerra anti-colonial tinha grande influência: ao exército.
A instabilidade política provocou crises sobre crises e o "fundo" estava cada vez mais "fundo".
O homem do barrete vermelho foi outro episódio da história da Guiné Bissau que ninguém consegue explicar.
Até que Nino regressou ao poder, quase que por um passe de mágica.
E o que é que acontece?
Neste momento discute-se, publicamente, a hipótese de uma associação da Guiné Bissau com o Senegal e sabem-se pormenores da miséria guineense que atinngem as raias do incrível, com pedidos dramáticos para o fornecimento de gasolina...
Já escrevi há mais de vinte anos que não descubro qualquer hipótese de a Guiné Bissau poder continuar a afirmar-se como país independente, com um estado autónomo, regido por guineenses.
Hoje reafirmo essa convicção, na certeza de que o eventual anúncio desta associação com o Senegal, despertará na Guiné Conackri o velho sonho da "Grande Guiné". No final, o mal menor será uma divisão entre os vizinhos do Norte e do Sul.
Deste modo também será resolvido de vez o velho imbróglio das fronteiras marítimas da Guiné Bissau, que mercê de um acordo entre Salazar e De Gaulle, estão em desacordo com as leis internacionais, o que tem impedido a exploração do petróleo que existe no mar da Guiné Bissau.
Provavelmente, este será o primeiro golpe na Carta da ex-OUA que impede a todos os estados independentes de África alterar as fronteiras herdadas da colonização. Nessa perspectiva, daqui a alguns anos, os professores de História dirão aos seus alunos: "aqui, nesta zona, houve, em tempos, a tentativa de um estado independente"...foi um puf histórico.

sábado, junho 16, 2007

NO ANTIGAMENTE (6)

A deixa foi a brincar, a sublinhar o vício do chamariz: títulos com sabor a escândalo! O dia a dia luandino era semelhante a tantos outros e o impacte maior resultava do crescimento abrupto da cidade, que ia inchando de gente da noite para o dia. Mas não era a agulha a esconder a montanha. Angola repovoava-se em todas as direcções. O avião estava para o grosso do território (qu'é pra não tar a dizer colónia, qu'a censura não gostava), como o maximbombo para a cidade. O taxi aéreo florescia e as estradas, decentes, que começaram a aparecer permitiram não só morar nos arrebaldes, como ir até Nova Lisboa, até Benguela ou Lobito. Do Huambo podia seguir-se até Sá da Bandeira e descer para Moçâmedes, que tinha uma praia cheia de meninas bonitas. O mundo não acabava ali. Ainda havia estrada, pelo deserto fora, até Porto Alexandre.
Não estou a fazer o roteiro e já ontem referi a correria até ao Luso, bem pelo interior.É melhor encostar aqui, antes que desate a falar dos comboios.
Gaita! É sempre o mesmo. Logo que entro em Angola perco-me. Ah! Hoje era para matar alguém. As cidades principais não eram, nesse tempo, especialmente violentas, daí que não fosse preciso muito para causar pasmo. Uma manhã soube-se que um homem tinha sido morto a tiro,
nessa noite, no morro da Samba.
Depois soube-se que se tratava de um par, que estava a namorar, junto ao carro. Um ruído qualquer alertou o homem, que avançou na direcção do ruído.Um tiro abateu-o. A dama que estava com ele correu, ajoelhou-se e procurou reanimá-lo. Ouviu outro carro arrancar e levantou-se para pedir socorro. Mas o carro seguiu. Vestiu-se de desceu, aflita, à procura de socorro.
Quando a polícia chegou ao local verificou o óbito e alertou a Judiciária.
A vítima era um homem casado e a esposa não se encontrava em Luanda, na altura. A mulher que o acompanhava na altura do crime era professora numa escola do Estado. Os dois mantinham uma ligação discreta extra conjugal.
E, de repente, a cidade pareceu encolher-se. Só se falava do crime da Samba. De facto, depois de ter sido ouvida no local do crime e de ter seguido para casa, a jovem professora voltou à Judiciária, para ser de novo confrontada com os agentes e ficou detida. Tudo isto se ia sabendo pelos diários. Faltava o Notícia ao sábado.
Os pobres repórteres andavam numa fona para tentar saber alguma coisa. Enquanto a(ainda misteriosa) dama estava a ser ouvida, um dos agentes soprou-me: «De vez em quando a menina vai à varanda, para o director poder assinar papéis urgentes». O Baião sumiu-se dali e passado um pedaço voltou e acenou-me com a cabeça. Bom, já tinhamos «boneco». E que foto! A jovem encostada à varanda a chorar...
Ao fim da tarde sabia-se pouco, mas já tinhamos «bonecos».
E sabia-se que a jovem tinha indicado a matrícula do carro que vira sair, depois do tiro. Essa matrícula não correspondia. De facto correspondia. O que divergia era a interpretação. Por hábito de professora de meninos tinha dito« jê» em vez de «jota» e a polícia procurara um «g».
E foi outro escândalo. O carro era de um empregado bancário, e conhecido colaborador desportivo da «Província de Angola». A fuga tinha uma motivação credível , ao tempo a homossexualidade era embaraçosa.
Houve, claro, outros ingredientes que alimentaram a especulação. Por todos os cantos se sopravam nomes de presumíveis culpados. A professora foi solta, mas não pôde voltar à Escola. A «santa madre igreja» impunha regras morais, que cada qual desrespeitava como podia mas a benzer-se. Foi complicado tratar do funeral da vítima. A igreja onde o defunto comungava não o aceitou para o velório. Mas outro padre, de outra freguesia aceitou-o.
E a vida seguiu o seu rumo. Até o director da Judiciária mudou, Era um magistrado mais dinâmico, que mantinha, uma boa relação com a Imprensa e televisão não tinhamos. Recordo-me que, pelo Natal ,o surpreendi com um embrulho. Uma caneta, nada mais que isso.Os dois agentes mais próximos dele tiveram as garrafas do costume.
E um belo dia, quer dizer, uma alta madrugada bateram-me à porta de casa. Era o director daPJ
e uns três colaboradores próximos. Vinham radiantes. Tinham acabado de obter a confissão do assassino da Samba. Um simples mirone. Um tipo que se movimentava de motorizada e que, à noite, ia espreitar os casais românticos. Durante o dia, de vez em quando surripiava umas coisas aqui, outras ali, enfim, fazia pela vida. E foi justamente por isso que foi apanhado. Por coisa sem importância. O que o tramou foi a montanha de jornais (e de Notícias!) amontoados. E todos se referiam ao crime da Samba. Um dos agentes suspeitou. Foi tiro e queda!
Foi assim que soube que nas saídas nocturnas o pequeno larápio levava com ele a mulher. O requinte era poder gamar uma recordação dos casalinhos amorosos! Numa dessas surtidas, apanharam um susto. Mas o sujeito não desistiu e toca de comprar uma pistola. Foi ao mato experimentar a arma, para ver como era. Sentiu-se seguro. Na noite seguinte, com a mulher, voltou à lide. Foram ao morro da Samba ver o amor. O homem que espiavam levantou-se
e caminhou na direcção deles, sem os ver. Assustou-se. Mas agora tinha arma. E disparou. Um tiro. Um só. Foi o bastante. Desgraçou-se.
Para mim foi um inferno. Era quinta-feira. O Notícia estava pronto, A conferência de imprensa na Judiciária ia ser marcada para o meio-dia. Cabia-me acordar o meu director e a ele acordar o chefe das oficinas. Escrever, paginar e imprimir um suplemento para pôr na rua ao princípio da tarde.
Outros crimes houve com tanto ou mais impacte. Dois deles ficaram-me na memória, mas mais pelo lado obscurantista da Justiça, sempre difícil de entender ou aceitar. Um deles, na terra do meu editor, na Huila, nesse tempo eu dizia Sá da Bandeira, mas ele, bem entendido, não teve nada a ver com aquilo, apesar de ter reconhecidamente mau feitio. Uma senhora, viuva, foi morta, em casa. Ao tempo a investigação criminal fora de Luanda dependia do procurador delegado do MP, creio que era assim que se dizia, a «Judite»não era para ali chamada. As averiguações não encontraram pistas e o processo de investigação ficou parado. O filho da senhora, empresário de construção civil, bem relacionado em Luanda, lastimou-se junto do governo. O governador encaminhou-o para a Judiciária. E terá telefonado para o director com um «Vê lá o que se pode fazer».
Foram mandados dois agentes à Huila. Ao cabo de três dias de investigação. Detiveram três irmãos, vizinhos da senhora e rumaram com eles a Luanda. Nessa mesma noite um deles confessou. Foi feita a reconstituição do crime, no local, e o processo seguiu para a Huila, onde o
procurador do MP entendeu não encontrar matéria suficiente para levar o réu a julgamento.
Caso semelhante haveria de ocorrer em Luanda, mas com outros contornos.
Uma das candidatas a miss Angola foi assassinada e encontrada morta na banheira de uma casa de banho, em Luanda. O administrador do Notícia, que tinha tido uma relação com a jovem foi investigado e detido. Acabou acusado e o processo seguiu para tribunal, sem confissão e sem qualquer elemento de prova. E o juiz não deduziu acusação , devolveu o processo e soltou o arguido. Na PJ o processo foi posto na gaveta e não teve mais investigação. Nos idos, o conceito de Justiça tinha preconceitos e parecia sofrer de ciumeiras. Entre nós, na actualidade já não existem decerto ciumeiras, nem preconceitos. Há gavetas... enormes!

sexta-feira, junho 15, 2007

NO ANTIGAMENTE (5)

«E Deus criou Eusébio», título da responsabilidade do chefe de redacção, tinha mais a ver com a idolatria pelo crack do que a manchete obrigada a mote dos nossos dias. No Notícia, a preocupação pela capa da revista fazia sentido, mas a manchete era em geral feminina e acalorada. As chamadas à capa eram poucas e sobre assuntos que os leitores já aguardavam com impaciência. Evoco a entrevista de Edite Soeiro ao «pantera negra» porque, nessa edição, a parte de baixo do bikini da menina da capa era de malha e o censor em Lisboa acreditava ver entre as malhas cruzadas uns pelos escurecidos e creio que ele se serviu de uma lupa para ver melhor. Moral da história: não autorizava. Em Luanda já estava impressa e desde a véspera que ia na camioneta a caminho do Lobito, onde apanharia o comboio, até ao Luso.
Em Lisboa foi preciso improvisar. Foi assim mesmo: a manchete «E Deus criou Eusébio» cruzou por cima do arrendado calçãozinho e salvou o pudor censório.
Menos sorte teve o Baião. Fomos a S.Tomé, por alturas da guerra do Biafra.Mal chegados e ainda sem hotel fomos a correr para um avião. Era um casamento que ia ter lugar por cima da linha do Equador, entre um piloto e uma enfermeira um e outra ao serviço das igrejas humanistas que procuravam acudir às populações indefesas, dizimadas pela guerra. Os aviões levavam mantimentos e traziam feridos para improvisados hospitais de lona, onde médicos e enfermeiras voluntários ajudavam.
O Baião teve artes de convencer a noiva a posar. Na manhã seguinte, e cedo, à noite de núpcias,
a jovem fez a vontade ao fotógrafo a fomos até junto do mar fazer os bonecos. Não estava maquillada. Foi levantar, lavar à pressa, pentear o cabelo no carro e vai disto. Não só com a bata, mas, também de bikini. Era bonita.
A reportagem sobre o dramatismo que se vivia, incluiu o casamento, bem entendido e uma das fotos da noiva junto do mar, mas não foi capa. A Censura cortou. Não havia razão, mas cortou. E cortou não pelas fotos mas pelo facto do carnaval do Rio de Janeiro ter sido pouco antes e de terem aparecido na imprensa de Lisboa algumas fotos do corso que escandalizaram a Igreja, o que levou a que o governo impusesse um período de recato, com ordem à Censura de não deixar passar nada...
E foi justamente em S.Tomé que, pela primeira vez vi o dr. Mário Soares. Estava na pista do aeroporto, junto a um bimotor, de conversa com os tripulantes. Dei por isso porque o responsável pela polícia política estava a dizer ao colega que assistia à chegada dos passeiros de Luanda «já disse que não queria aquele cavalheiro na pista»...
Haveria de vê-lo numa África mais profunda, em Luzaka, a dar conta aos poucos jornalistas que ali estavamos também, para saber do que poderia sair da reunião com a Frelimo. Estafado o ministro parecia vergado ao peso do colonialismo maquiavélico que representavamos. Sabia pouco de África e de africanos. Deviamos despir o colonialismo e zarpar. A seu lado o estratega Otelo, natural de Moçambique, mudo e quedo.
Não tardou que em Moçambique a situação se fosse alterando a Frelimo entrou discretamente mas entrou. O assalto ao Rádio Clube nem sei o que foi. Estive lá mas não percebi. Terá sido um apalpar de terreno. Nada se movimentou. Os «assaltantes» sairam pelas trazeiras tranquilamente e foram para o hotel mais snob de todos. Estive lá e vi -os, como eu, sentados na esplanada, a conversar. Dormiram a zarparam manhã cedo. Haveria de ver o mais gordo deles
uns dias depois na Mutamba. «Olá! E então?» disse-lhe. Encolheu os ombros. Nem respondeu e abalou...
Tive sorte de conhecer Moçambique bem, de cima a baixo. Viajei de comboio de Lourenço Marques para Joanesburgo já nesse período conturbado da transição. Comia-se bem, naquele comboio. Joanesburgo era uma boa imagem de colonialismo puro e duro. Fui lá para ver o meu filho, que estava em casa de um casal amigol sul-africano. Havia, claro, muito comerciantes portugueses, em grande parte madeirenses. Tinham aprendido a ser brancos, que era uma coisa que não sabiam, quando foram para lá. Deu para o azar. Agora é complicado ser branco, mesmo madeirense e sobretudo ser comerciante. Não houve revolução para mudar de governo. Foi para muito mais. Só que o muito mais nunca mais chega! E o casal meu amigo já não é sul africano.
Adquiriu a nacionalidade australiana. Até as netas já são naturalmente australianas. Está-se por lá muito bem, mesmo se às vezes faz mau tempo!
E é tempo de ir jantar. Deixo para amanhã o crime da Samba...

quinta-feira, junho 14, 2007

NO ANTIGAMENTE (4)

Rememorar o passado, mesmo sem rede, é menos difícil do que parece. Já vos disse que fui de barco, nem sei se sublinhei o suficiente para se entender que foi viagem clandetina. Mas regressei de avião, sem mala. Só. A família ficou e com ela tudo o que tinhamos.
Por cá encontrei outros que vieram à frente. Juntamente com eles e outros que vieram depois reintroduzimo-nos e retomámos o caminho, perdendo-nos aos poucos uns dos outros.
Quem nunca se esqueceu de se juntar anualmente e acamaradar foram os hoquistas angolanos, malta gira e bem animada. Cruzeiro, já veterano, empurrou os bancários e fêz deles uma equipa que animou os campenatos de Luanda. Sá da Bandeira e Moçâmedes também contribuiam. Ainda não era como Moçambique mas já dava para grandes e animadas jogatanas. O que começou por diversão empurrou-me a intervir da única maneira que estava ao meu alcance: levei o desporto para o Jornal. Vesti outra pele e os desportos entraram para ficar. Ainda vi o Peyroteo e o critiquei como seleccionador, que dirigia a equipa angolana no jogo contra Moçambique. O Rafael Soares perorava sobre hoquei, basquete, foot, como se percebesse daquilo tudo. Não brinquem comigo. Ir ao Luso ver um jogo de bola não era brinquedo. E uma das vezes fui lá de carro, com outros quase tão irresponsáveis como eu. Meninos, aquilo era o mesmo que ir daqui a Berlim. As estradas já davam. O problema não era esse, mas sim o tempo que se perdia nas áreas em que só se podia prosseguir em coluna militar. Ter cartão de jornal dava alguma credibilidade. Fomos dando desculpas que íamos só ali a diante, buscar uma encomenda e vínhamos já. Lá fomos indo estrada fora. Atravessou-se a Lunda e chegámos ao Moxico sem problema. No domingo assistimos ao jogo e invoquei o meu drama de atarefado e regressei de avião.
O único problema é quando alguém pretendia falar com o Rafael, que era quase tão difícil de encontrar como a Maria Gabriela, que fazia o «correio do coração» ou o Sousa Oliveira, que se encarregava dos crimes. Eram os mais solicitados. Muitos ramos de flores e caixas de chocolates chegavam para a Maria Gabriela. De uma vez um sujeito que se identificou como da Pide pretendia falar com a «senhora». Expliquei que se tratava de pseudónimo e que não podíamos quebrar o sigilo. E fui teimando e acabei por perguntar qual era o assunto. O sujeito acabou por admitir que suspeitava que um dos temas tratados tivese a ver com ele. Avancei com uma solução. A «senhora», quando trazia o texto, entregava o correio tratado e recolhia o novo. Eu teria a carta do assunto dele, dobrada, para não se ver a assinatura, e mostrava-lha.
Se ele reconhecesse a letra, muito bem, se não, escusava de saber de quem era a carta. Ele aceitou. E eu pedi à secretária da direcção que copiasse o original. Quando ele voltou,mostrei a carta e ele ficou muito satisfeito, abanou a cabeça satisfeito. Que bom, que bom, não era com ele...
E nem era por aqui que ia começar. Tinha por intenção mostrar que é bem o presente que nos ajuda a recordar. O caso Charrua, por exemplo, ia acontecendo comigo, que nem trabalhava para o Estado. Terá tido mais a ver com café, que em Angola era qualquer coisa! Por mór do Instituto e do Quim Cabral, que lá estava, fui ao Uíge ver como o Instituto tinha incentivado os... porra, como é que se diz? Os autoctones?os naturais? os indígenas? Bom, os pretos da região
a fazer café, a plantá-lo, a cuidar e a subsidiá-los nesse arranque. Até então eram os comerciantes que geriam, à moda deles, a situação. E faziam-no, bem entendido, à moda deles!, explorando desalmadamente o gentio.
Devo abrir um parentesis lembrando o papel preponderante que o comerciante representou no povoamento e desenvolvimento das regiões em Angola. Era gente rude, sem instrução bancária e fizeram, à moda deles, o que o Estado e a Economia deixaram por fazer. O Instituto permitia-se intervir no Uíge porque possuia uma filosofia diferente dos governos de então e porque dispunha de um prestígio extremamente importante no mundo do Café, designadamente em Londres. E foi no decorrer de uma visita que se fez à região, promovida pelo Instituto, para mostrar o sucesso da operação, quando chegou a altura dos petiscos e dos copos e das graçolas que eu fui denunciado por ter proferido uma chalaça injuriosa para com o Governador Geral. O dito ficou ofendido e chamou-me ao Palácio para me dar conta do sua indignação. Como eu não era funcionário público, informou-me que ia entregar-me à DGS.
Sai dali e fui direitinho ao gabinete de São José Lopes e contei-lhe a facécia. «Esses gajos do Uíge não têm juizo», disse ele. «O menino vai escrever ao governador a dizer que concorda que o assunto seja levado à DGS, e deixe comigo...»
Eu deixei, mas o governador não era parvo. Percebeu e, nessa noite, no decurso de um beberete
não sei a propósito de quê , e onde eu estava, disse coisas sobre a maldicência e como ele estava disposto a acabar com aquilo. Para começar já tinha mandado um jornalista para a "Judite".
E lá fui à Judiciária e pedi para ser acareado com vil denunciante. Era colaborador do Notícia
e viu a redacção do Jornal desmenti-lo. O processo foi para a gaveta. Jornalista pesava mais que director de entidades públicas.Outros tempos...



(continua)

quarta-feira, junho 13, 2007

NO ANTIGAMENTE (3)

Foi a primeira desilusão. Duas colunas discretas, na última página, depois de uma noite trágica! Haveria de ter outras mágoas, próprias da profissão. Mas nenhuma me doeu tanto.
No NOTÍCIA foi diferente. Entrei pouco depois do morte de João Charula e o ambiente ainda se ressentia da sua falta. Da delegação de Lisboa, sobretudo, chegavam os receios de quebra de dinamismo, que o João emprestara ao projecto. Mas a Redacção reagiu pronto e bem. João Fernandes e Acácio Barradas tomaram as rédeas e o projecto editorial prosseguiu sem perturbações.
Também eu tive de caminhar para me impor na Redacção. Aprendi com o espírito do Jornal, como o designavamos; nunca, para nós, foi semanário.
Mas o Notícia merecia, e ainda merece, uma história melhor da que eu sou capaz de descrever e ainda não falta quem a possa descrever.
O que mais me espantava é que de Lisboa chegavam boas entrevistas, no que a Edite se esmerava, mas nada de reportagem que nos esmagasse, a nós, a saloiada africanada. Aquele pedaço salazarengo de Europa continuou igual, mesmo depois do «patrão» tombar da cadeira.
Quando em serviço corriqueiro fui ao Brasil com Marcelo (Caetano) o avião ia repleto de colegas
europeus. Dois deles até tinham levado casaca, smoking só,não dava, era preciso casaca para jantar nas recepções oficiais. Havia imensa curiosidade em ver como iria Marcelo enfrentar os jornalistas brasileiros e as questões que se levantassem sobre presos políticos.
Não custou nada. Marcelo limitou-se a debitar que tinha perguntado quantos detidos desses havia, se é que existiam e tinha obtido a informação de que existiam cinco ou seis, cujos processos estariam quase terminados e mudou de conversa.
Depois da conferência de imprensa, desmarquei-me e fui conversar com umas pequenas brasileiras que tinha conhecido no jantar anterior. Depois, ao fim da tarde, ouvia os colegas a falar disto e daquilo, lia os jornais. Por fim fui ao Cruzeiro e pedi a um colega brasuca que me cedesse algumas fotos.
Regressamos a Lisboa no dia em que a Apollo tripulada iria pousar na Lua.E foi. Muita gente seguiu o acontecimento pela televisão. Nos states nós, Notícia, tinhamos o Quim Cabral e o
Moutinho Pereira, a cobrir o acontecimento. Sem colegas metropolitanos. Nem Rádio, nem gente da RTP, ninguém achou que valia a pena lá ir, lá estar...
A verdade é que a Pide já não se chamava Pide e isso tinha e teve reflexos. Como a censura que, em Lisboa, se considerou que devia mudar de nomenclatura mas manter-se na mesma. E quando, a propósito de uma entrevista ao deputado Balsemão, com muitos cortes de censura, a ponto da chefia entender não a publicar e substituir pela habitual «Ferradura» muito usada
sobretudo quando «a chuva e o bom tempo» era cortada pela Censura. Dessa feita, imagine-se!
do palácio solicitou-se o obséquio de não usar o utensílio da publicidade à Neográfica! E, depois, negociaram-se os cortes, um a um, entre as três partes: Balsemão, Censura e Notícia. A entrevista saiu. Teve alguns cortes, é certo, mas saiu com o aval do deputado .
Voltei a ver primeiro-ministro, nem sei se também era Sua Excelência o Presidente do Conselho, como o antecessor, em Bissau, onde acabava de chegar e de onde ele iria partir para Luanda, daí a nada. E veio-me à memória, a propósito da mania que tinhamos de estar em todas, que o Farinha estava na Guiné, quando o helicóptero com o deputado se despenhou.
Teria algo de mania, mas... foi o Baião que criou o cisma, quando do alto de um prédio, na Marginal, em Luanda, fotografou sem se dar conta, no arranque de uma corrida de automóveis, o acidente espectacular, com a morte de um dos pilotos. À noite, na câmara escura, ao espreitar os negativos, lá estava, sobre a confusão, o corpo todo no ar. A única, bem entendido!
(continua)

NO ANTIGAMENTE (2)

Fui atrás de Thomaz. Ele era presidente e ia para Moçambique, no barco mais importante. Eu ia mais atrás quatro dias, no "Pátria" e quedei-me por Luanda, num sábado à noite. No domingo, pela manhã, fui ao Kinaxixe comprar bananas. Na segunda-feira apresentaram-me ao Araújo, do «Comércio» e lá fiquei, antes mesmo de saber que Ferreira da Costa era director. Por essa altura Tavares da Silva, o Adelino, estava na Huila, a curtir dos pulmões. Só conhecia, e de véspera, Rosa Duarte, tudo o mais era novidade. Ia fazer a cidade. Para começar tinha de fazê-la, a cidade, a pé!Polícia e hospitais, à noite. Por feliz sugestão de um enfermeiro do «Maria Pia» comecei a frequentar o Tribunal de Polícia, com sucesso. Costuma dizer-se que mais vale cair em graça do que ser engraçado! O juiz do tribunal era, por inerência o director da Judiciária, nessa altura um magistrado cabo-verdiano. Ficou agradado com o destaque. Umas duas ou três vezes deu-se ao cuidado de clarificar alguns pormenores da descrição de julgamentos, mas sempre de maneira cordial. Apresentou-me a dois dos inspectores da Polícia, através dos quais obtive informações que valorizaram bastante a minha condição de repórter novato.Toda aquela sombria incerteza que eu carregara de Lisboa se esfumava. O Jornal era uma coisa! Telex não havia, o homem do «estrangeiro» obtinha notícias através dos noticiários em Onda Curta, da Europa, África do Sul, fosse de onde fosse que se ouvisse noticiários. Havia um serviço da Reuter para a África do Sul, com um terminal no jornal do lado, «a Província de Angola».A minha mulher, com os filhos, vinha a caminho. Estava nas Canárias à espera de um barco que fizesse escala, para rumar a Luanda. Não era fácil. Mas foi. Um colega pertencia a uma associação internacional de beneficência ou similar, cujo presidente era o director da agência marítima em Luanda.Lá fui de cartão e obtive um sim senhor, ia dar ordens para que a senhora e as crianças pudessem embarcar no primeiro paquete que passasse. Nessa mesma noite, um director de pessoal do Banco Comercial de Angola apareceu no jornal, de que o Banco era accionista, para pôr um anúncio de «precisa-se» de empregada, com conhecimentos de inglês e francês e eu fui logo dizendo que a minha para além desses sabia sueco e finlandês. Tiro e queda: ainda a mulher não tinha embarcado e já tinha emprego no banco.Ah!Gaita! Esqueceu-me de dizer que estavamos em guerra. Pois!Sim,sim, estavamos, mas não se dava por isso. Via-se muitos soldados pelas ruas da baixa ou sentados nas esplanadas.Alguns deles, geralmente com divisas, entretinham-se a trocar divisas. Os euros deles eram escudos e os nossos angolares. Por aquela altura começavam a chegar também as esposas dos capitães, tenentes, tenentes ou tenentes-coroneis. As escolas estavam sempre disponíveis para essas senhoras. Por vezes notava-se muita procura de casas. Por vezes apareciam muitas casas novas ditas clandestinas. As câmaras começavam a ser lá o que vieram depois a ser aqui.Dizia-se também que só podia ser luandeiro quem tivesse estado na pensão Sirius, trabalhado no «Comércio» e namorado uma das Mascarenhas. Eu estive na Sirius, trabalhei no «Comércio», mas a minha mulher chegou cedo...Uma noite estava de folga. Fui ao cinema e passei,como era hábito, mesmo de folga,pelo Jornal.«É pá...Vais para casa? Passa no Hospital...pá...telefona de lá...»O «pá» foi e esbarrou com qualquer coisa de estranho. Gente a mais, barulho a menos. Alguns polícias inusitados. «O que é que se passa», perguntei ao enfermeiro da entrada. «Não passa nada» disse o polícia, atrás de mim:«já pode desandar»...Alguém gritou a perguntar se já estava o carro. Dois enfermeiros e três enfermeiras avançavam para a porta, com sacos de mão. Perguntei a uma delas o que estava a acontecer e ela respondeu-me baixo.«não sei bem...é uma tragédia no S.Paulo...com crianças»...As três entraram no carro e eu entrei à balda junto dos dois enfermeiros e o xui nem deu por isso.Eram 24 se bem me recordo e estou a rememorar, as crianças internadas, aliás já só contei 19. Eram crianças de um centro, mas naquele tempo não se sentia vergonha de dizer asilo. Eram de um asilo e ao princípio da noite adoeceram, não reagiram a tratamentos e acabaram por ser levadas para o hospital. A Pide estava por lá, bem entendido. A guerra tem muitas facetas. Uma enfermeira,que como eu, estava de folga debruçada sobre uma criançae sentou-se na cadeira coma mão de menina entre as suas. Era a mãe da criança e enfermeira naquele hospital. Segui uma das enfermeiras até um barracão do outro lado do pátio. Ela ia buscar não sei o quê. Cinco corpos de crianças estavam sobre colchões no chão. Eram as primeiras das duas dezenas que faleceram. A menina da enfermeira foi a última a perecer, já de manhã. Tinha telefonado pata o jornal. Avisei o Araújo de que o governador vinha a caminho.Ferreira da Costa apareceu, bem entendido. Deu a sua de impressionado, cumprimentou o governador, falou com dois secretários e foi embora. O Araújo veio dizer-me que o director lhe tinha dito para me dizer que eu tinha feito bom trabalho.Passei a noite a telefonar para o jornal. Dei informações detalhadas, mas já sobre a manhã é que se apurou que tinha sido pó comprado nessa tarde, para lavar as cabeças das garotas, a causa da tragédia. Simples: o droguista disse ao rapaz coisa do estilo: «vai lá dentro e tira do saco que está a direita duas medidas de pó» Ou o garoto, que não sabia ler,não conhecia a direita ou o saco estaria trocado.Pela manhã passei pelo jornal. Tinha sido o único jornalista presente, Ninguém da Rádio,nem dos jornais estivera no hospital. Desdobrei o jornal até à última página, sob o título: grave caso de intoxicação no asilo - cerca de duas dezenas de crianças hospitalizadas.(continua)

NO ANTIGAMENTE

Os cinquenta anos da RTP estão a trazer à ribalta pedaços de passado. Imagens desse passado, devia dizer. Seja como for, comove os mais velhos e pouco ou nada impressiona os jovens. para mim, como para tantos, como eu,africanizados e devolvidos, o tempo de tv é menor. Em África não tivemos televisão praticamente, até ao retorno. Já estava no «Jornal Novo» quando apareceu a «Gabriela». Claro que já muitos de nós deitavamos um olho à televisão, pelas férias, mais ou menos demoradas ou por viagens, daquelas a que os pobres jornalistas se sujeitavam, pelo mundo fora...Seria exagero dizer que havia tv no Zaire ou na África do Sul, mas vi televisão, em Joanesburgo, ou em Kinshasa, esta inesquecível, pela forma como se apresentava, ao princípio da noite: céu amplo e das nuvens surgia Mobutu, com o imperial varapau!Em Luanda ainda não.Talvez por isso, a imprensa escrita e a informação pela Rádio eram mais vivas do que as congéneres metropolitanas. Tal como havia feito aos típicos cafés lisboetas, a Televisão foi empurrando os jornais para o lado.Ao princípio encheu as páginas dos matutinos de novidade,tal como começara por encher os cafés com televisor.Muita gente recorria ao jornal diário para entender o que vira à noite. Além de que a informação televisiva era escassa e tendenciosa. Algo que iria afectar, anos depois, o futebol. Os clubes foram mais prontos a ver o perigo e não queriam os seus na Televisão. Um presidente da República, pós 25 de Abril, pediu publicamente ao líder de um clube lisboeta que autorizasse o jogo domingueiro na televisão, que a lotação estava mais que esgotada.Fez-se-lhe a vontade, mas os outros clubes protestaram, porque tiverem menos receitas do que contavam. O grosso da coluna ficara em casa a ver o jogo lisboeta.Se ainda não perceberam, eu explico melhor. A TV era do Estado. O Estado, quando o dono morava na calçada da Estrela, vendia o produto televisivo como fazia com os isqueiros: cobrava taxa. Se não contassem bem os tostões,o «botas» mandava vir com eles.Para conseguir explorar a Pub, sem perder a taxa, inventou-se o segundo canal. O segundo canal não dava pub, mas também nada dava que se visse, servia para segurar a taxa, como passou a servir no submundo nocturno, quando se começou a perguntar às meninas se o menu tinha segundo canal!Fui crescendo entre jornais. O pai trazia-nos, ao almoço, o matutino «O Século». Sem qualquer razão política, o velho trabalhava com calçado e os sapateiros liam o «Século». Ao jantar trazia o «Popular». A minha mãe lia à cunhada, a única de seis irmãos que nunca aprendeu a ler, os dramas de «a cidade». Arrumados, tranquilos,os jornais não dependiam de manchetes.Os anos da guerra geraram grandes «cabeçalhos», como então se dizia,mas eu era ainda miudo.Só dei pelo lado especulativo, digamos assim,da imprensa, quando um célebre baile na Linha (Estoril) gerou um morto misterioso.Toda a gente falava daquilo, e alimentou os jornais alguns dias a fio, até que ouvi o meu tio explicar às senhoras da casa o que era aquilo:«Ó meninas, eu não sei nada. Só sei que houve música, só senhores estavam no baile. Não sei nada, Sei que houve um crime, mas não sei quem no cometeu»... Este último ó bem surdo, por sinal!As artes voltaram a ser agitadas nos jornais quando um treinador de futebol apareceu morto no parque Eduardo VII, quando um arguido (como se diz agora),que era magala, foi preso e o articulista do «Século» explicou:«Tanto a vítima, como o criminoso eram dois miseráveis». Ainda não descernia se a moral era assim tão, tão convencional ou se o jornalista era mesmo filho de puta.(continua)

sábado, junho 02, 2007

Nicolau (Borrelhas)


Há uns dias, a propósito do falecimento do Nicolau Camboneu (Borrelhas) prometi exibir neste blog pelo menos uma fotografia da célebre excursão que um grupo de adolescentes fez pelo Sul de Angola, em 1957.
Pois então aqui está ela. A legenda, da esquerda para a direita e de cima para baixo é: Tony Carranca (que fez um grande jogo neste dia, na Ganda), Dias Ferreira, um membro da equipa adversária, o Nicolau, Carlos Carranca, Alguém de quem me lembro muito bem mas cujo nome esqueci (as minhas desculpas), o meu irmão Mário e, em baixo, o Tareco e o Pereira, entretidos a desenhar quyalquer coisa na areia,o Nené Miranda, o nosso mascote, cujo nome também não me ocorre, eu e o Tó Zé Miranda, exibindo as suas dragonas de chefe de esquina.